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19/02/2022 às 00h00min - Atualizada em 19/02/2022 às 00h00min

1968 – Lembrando os jovens de Ibiúna

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


 
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Faz escuro mas eu canto,

porque a manhã vai chegar.

Vem ver comigo, companheiro,

a cor do mundo mudar.

Vale a pena não dormir para esperar

a cor do mundo mudar.

Já é madrugada,

vem o sol, quero alegria,

que é para esquecer o que eu sofria.

Quem sofre fica acordado

defendendo o coração.

Vamos juntos, multidão,

trabalhar pela alegria,


amanhã é um novo dia.

Thiago de Mello

Aos 95 anos, o poeta desse belíssimo poema - Faz escuro mas eu canto – encantou-se, passando para o convívio daqueles que o precederam, como Guimarães Rosa, Gonçalves Dias, Castro Alves, Neruda, Vinícius, João Cabral de Melo Neto, Torquato Neto, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, os quais também apenas se encantaram e continuam vivos e eternos na criatividade de suas obras literárias. Embora não tenha sido divulgada a causa do seu encantamento, sofria do mal de Alzheimer, esta cruel doença que deveria ter um decreto condenatório dos deuses do Olimpo, proibindo não azucrinar os poetas, que transformam os seus sentimentos, como faz escultor a trabalhar a rocha bruta, em monumentos de lirismo ou de narrativa épica que resistem incólume o passar do tempo.

Faz escuro mas eu canto, / porque amanhã vai chegar - são versos que venceram as intempéries do tempo, e dos tempos duros, de repressão, de cerceamento da liberdade, da edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, do congresso dos estudantes de Ibiúna, São Paulo, quando, em 12 de outubro daquele fatídico ano, a Força Pública, de São Paulo, armada de metralhadoras, cercou e prendeu mais de 900 estudantes, entre os quais se destacavam Luís Travassos, Vladimir Palmeira, Franklin Martins, José Dirceu, Rubem Grilo, Carlos Vainer e outros jovens líderes. Daí em diante, com o impedimento do ditador Artur da Costa e Silva, que, em agosto de 1969, sofreu uma trombose, sendo substituído por uma junta militar, formado pelos chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, apelidada pelo deputado Ulisses Guimarães de os Três Patetas. Pedro Aleixo, o vice-presidente, sucessor constitucional, em razão do afastamento e, depois, da morte de Costa e Silva, foi impedido de assumir, em frontal e grave desrespeito à Constituição Federal de 1967. Deu-se o golpe dentro do golpe, sendo institucionalizada a repressão, com a edição do famigerado Ato Institucional nº 5, datado de 13 de dezembro de 1968, o ano que, na expressão de Zuenir Ventura, não acabou e em que os movimentos de protesto dos estudantes e da cidadania ativa (as centrais sindicais no ABC paulista) se multiplicaram, sendo assassinado pela polícia o estudante Edson Luís de Lima Souto, e como consequência dezenas de outras manifestações de protesto, entre essas a Passeata dos Cem Mil, que teve a participação de artistas e intelectuais engajados na luta pelas liberdades públicas. Todo esse clima cívico contra a ditadura militar acolheu como dístico de luta o canto de Thiago de Mello contra a escuridão e a conclamação dos últimos versos desse poema que se insurge contra o conformismo de uma elite que sempre está ao lado da opressão. Isso desde a escravidão do negro, quando ponteia a figura de José de Alencar, como defensor do sistema escravocrata, ao insurgir-se contra os projetos de leis abolicionistas e fazer a defesa do sistema servil. E Thiago de Mello evoca o civismo em defesa da liberdade:
“Vamos juntos, multidão,

trabalhar pela alegria
,
amanhã é um novo dia.”

Em 68, Vandré já dizia: Vem, vamos embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. E Chico, o sempre Chico, alerta: Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão (...) Apesar de você / Amanhã há de ser outro dia.

Thiago, Chico e Vandré – quem sabe faz a hora, não espera acontecer. E mais: você que inventou o pecado / esqueceu-se de inventar o perdão. Por isso e mais que isso, como os estudantes de Ibiúna e essa gente esquecida, faz escuro mas eu canto, / porque amanhã vai chegar. E sempre será outro dia.

* Membro da AML e AIL
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