MENU

11/12/2021 às 00h00min - Atualizada em 11/12/2021 às 00h00min

O ERMITÃO E O SALAFRÁRIO (vida real)

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

 
E então naquela cidade vivia um ermitão. Ermitões só existem nos desertos e  nos contos da Carochinha mas esse era de verdade, em carne e osso e chinelo de dedo.  Ermitão veio das bandas daquelas terras de um povo marcado pelo celibato; abstêmio da sexualidade, convivente com a solidão. Ermitão era assim, um sujeito pacato, com um pé fora deste mundo, o outro no chinelo de dedo. Um tipo mão fechada, esquisito: “canhenga”, desconfiado, pão-duro.

Vindo das encravas do sertão em chapadas de cerrado, trazendo consigo uma ponta de recurso - creiam – chegou à cidade e, em meio às casas imprensadas e vida agitada, acabou por plantar um milharal de riqueza, fartura e prosperidade. Prédios, aluguéis e até bancos e seguradoras e loterias eram seus inquilinos. Acreditem! Mas ainda assim, o ermitão não comprava um ovo, nem um abano e vivia ali agasalhando-se à beira de parentes e arrastando  chinelo de dedo.

O povo sem jornal e sem Tv, vivia malhando a vida do “pobre” ermitão. Chamavam-no de miserável, “canguino” e outros adjetivos da mesma eira.  E ermitão lá, tirando de letra, em cima da fortuna que qual um milharal explodia aos olhos de todos – em casarios e prédios de andares agasalhando-se à beira dos seus; vivendo miseravelmente, sem comprar um abano, sem gastar com um ovo; sem um pinto para dar de comer e, como sempre, roupas surradas e arrastando o seu chinelo de dedo.

Ermitão, sem pai e sem mãe, sem mulher e sem filhos, tinha uns dois ou três  irmãos, igualmente sertanejos pessoas modestas, de vida regular que viviam ali à beira daquele resplandecente milharal de fortuna, com os quais, ora num, ora noutro -  ermitão agasalhava-se e comia o prato feito que lhe entregavam  nas mãos e que ermitão, por vezes ainda  comia em pé, conversando e andando para um lado e para outro. Esses mesmos familiares - herdeiros naturais e exclusivos daquele ente, cercavam-no a sete chaves; não queriam que ninguém dele se aproximasse, muitos menos mulheres de qualquer idade. De olho na fortuna, temiam que o dono do milharal se envolvesse com alguém, fizesse um bucho e... adeus herança.

E assim vivia o ermitão, dono de um milharal de riqueza na cidade e gado nas terras  do sertão, sem saber a conta, tudo “eirado”, mas comendo no prato feito, em pé, casa alheia, andando para um lado e para o outro, cercado e blindado pelos herdeiros seus parentes e sem comprar um ovo ou um abano, roupa surrada e arrastando chinelo de dedo a vida inteira.
********************************
Justo ali no território do ermitão em milharal de fortuna, ali chegou um Fulano de Tal; um tremendo SALAFRÁRIO, metido a “industrial” do meio ambiente vindo das bandas do “Gó-iáis”, um sujeito que deu o cano só em todo o mundo e seu Raimundo. Bacana, boa pinta, esperto, mulher bonita, óculos de intelectual, carrão para cima e para baixo, estilo gente boa. Tudo fachada!!! E foi dando golpes na cidade; ora num, ora noutro, cheques sem fundo em quantidade. E foi estendendo... estendendo...  o seu repertório, até que o seu raio de ação saturou. Tornou-se figura pública, rematada e carimbada na cidade. Que lá nada, SALAFRÁRIO viu onde tinha uma mina de ouro, justo nos guardados do ermitão, ele que, mesmo na cidade e dono de um milharal de riqueza, de um rebanho de gado “eirado” em realidade, vivia fora do mundo, roupa surrada,  comendo em pé e arrastando chinelo de dedo.

SALAFRÁRIO mirou bem ou como diz o Cobra Mansa: “cubou”, tudo direitinho, arquitetou, planejou, armou o bote. Muito simples, até. Ermitão dono de imóveis e salas, e apartamentos, tudo maravilhoso no coração da cidade que viviam na malha do aluguel de especulação. Salafrário, então, alugou uma das salas no plano-terra, vitrine para  tudo e para todos. E montou um “escritório de compra de gado”, com secretária, máquinas, telefone e arcondicionado. Tudo fachada!!! E pagava o aluguel correto, direitinho, antes mesmo do vencimento. Era a arapuca, o bote!

E foi ganhando a confiança e a simpatia do ermitão, este mesmo que por vezes ficava horas esquecidas, sentado no escritório de Salafrário, assistindo a “negócios”, compra e venda, operações financeiras; telefonemas de gente importante e outros tantos “rei da bota”, que por ali chegavam, puxando talões de cheque, botando chapéu sobre a mesa e negociando fortunas. Tudo fachada!!! E ermitão só vendo aquilo, longe de imaginar que esse papel de parede era uma arapuca em cima do matuto e “canguino”, dono do milharal e gado eirado.

Aí já com o cerco fechado, Ermitão rendido pelas “riquezas” e “negócios” e “honestidade” do seu inquilino - Salafrário, então jogou o bote. Propôs  comprar uma partida de gado “eirado” do seu senhorio. O dono do milharal nem pensou duas vezes. Negócio fechado! Coisa de fim de semana! E lá se vai um “cheque voador”, cruzado, nominal, pagamento “à vista”.

Ermitão, chinelo no dedo que não sabia o que fazer com dinheiro, olhava o cheque... olhava o cheque...  e imaginava construir o seu terceiro ou quarto(?) prédio, bem ali no coração da urbe, dentro do milharal.... e bota riqueza por cima de riqueza... Enquanto isso, do outro lado da BR, Salafrário, óculos de intelectual, pinta de bacana, de posse daquela fortuna em “gado eirado” e já com o repertório-bandido, esgotado na cidade, pegou sua mulher bonita e tudo o que tinha. Anoiteceu e não amanheceu. E seguiu de volta, rumo ao seu “Gó-iáis”, de onde veio.
***************
* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho. E questiona o social. E-maill: [email protected]
Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »