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28/06/2024 às 18h00min - Atualizada em 28/06/2024 às 18h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

O Crime de Abortamento e o PL nº 1904/2024

Não quero fazer desta conversa de hoje, entre mim e aqueles que têm a generosidade de ler este texto, uma chatice técnico-jurídica a respeito de um tema que foi objeto de ampla pauta em todas as mídias: a questão do aborto, a ser definida em projeto de lei sua normatização em tipicidade mais agravada, para que seja aplicada a pena do crime de homicídio, prevista no art. 121 do Código Penal. Esse é o ponto controvertido, que incitou a polêmica em todos os nossos rincões: ruas, clubes sociais, mesa de bar e meras reuniões formais ou informais de algumas pessoas preocupadas com o caminhar da nossa legislação penal, ora atrelada a uma falsa ideologia humanística ou destituída de qualquer humanismo.

Faço alguns esclarecimentos iniciais. De início, deve ser dito que o delito de abortamento, denominado pelo Código Penal brasileiro de crime de aborto, está incluído no Título I, que contempla os crimes contra a pessoa, bem como no seu Capítulo I, que trata dos crimes contra a vida. Nesse capítulo, encontram-se tipificados os crimes de homicídio (art. 121, CP) simples ou qualificado, incluindo-se o novo tipo penal denominado de feminicídio (inciso IV do § 2º do art. 121, CP), além do homicídio culposo; assim como de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação (art. 122, CP); de infanticídio (art. 123, CP) e o crime de aborto (arts. 124 a 127, CP).

Poder-se-ia estabelecer um relacionamento entre a tipicidade do infanticídio (art. 123) e do crime de aborto, que têm algumas definições típicas e, a depender de como foram praticados, podem ter alguma semelhança. Nada obstante esta observação, devo dizer que o crime de infanticídio é o que se chama de crime próprio, praticado pela mãe, durante o parto ou logo após, em estado puerperal, situação emocional que pode envolver a parturiente, física e psiquicamente, durante a expulsão da criança do seu ventre.

À guisa de melhor compreensão, cito essas lições doutrinárias: In Código Penal Anotado e legislação complementar, de Luiz Régis Prado e Cezar Roberto Bittencourt, p. 501, a respeito do aborto, ensinam: “É a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológica da vida intra-uterina.” Costa Jr.: é “a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção”. Vítor Eduardo Rios Gonçalves, in Dos Crimes contra a Pessoa (Sinopses Jurídicas), p. 41, “é a interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto”. Fernando Capez1: "considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina". Esses conceitos delimitam o campo de conhecimento do crime de aborto. Adverte ainda Fernando de Almeida Pedroso2 que “o Direito Penal protege tanto a vida extra-uterina com a intra-uterina, tutelando a primeira com a incriminação do homicídio, infanticídio e participação em suicídio e, a última, com a inflição de pena às modalidades delituosas de aborto”. E fixa esta posição doutrinária: “A vida endo-uterina se ultima com o princípio do processo de parto, momento em que se inicia a vida extra-uterina. Desta sorte, dessume-se que o princípio do processo do parto desempenha o papel de marco delimitador e fronteiriço do final da vida endo-uterina e o começo subseqüente da vida extra-uterina.” O aborto elimina a vida endo-uterina. Caracteriza-se pela interrupção desejada e voluntária do estado fisiológico da gestação, trazendo como consectário o perecimento do nascituro. Ressalte-se que o delito de homicídio tem como limite mínimo o começo do nascimento, marcado pelo início das contrações expulsivas. Assim, a morte dada ao feto, durante o parto, tipifica, em princípio, o delito de homicídio. E, se o sujeito ativo for a mãe, em estado puerperal, tem-se o crime de infanticídio. Por isso mesmo, em qualquer fase da gravidez está configurado o crime de abortamento, abrangendo o período entre a concepção e o início do parto; iniciado o parto, pode-se estar diante dos delitos de infanticídio ou homicídio.

1 CAPEZ, FERNANDO. Curso de direito penal — parte especial: 1. ed., vol. 2., São Paulo: Saraiva, p. 107.

2 PEDROSO, FERNANDO DE ALMEIDA Homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto: 1. ed., Rio de Janeiro: Aide, 1995, p. 255.

Deduz-se que a proteção penal do aborto, tipificado como crime, se inicia com a fecundação. Tanto que – enfatizo – o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 1.811/2006, regulamentou a utilização de método contraceptivo de emergência, denominado no jargão popular de “pílula do dia seguinte”, e, por isso mesmo, reconhece-se que não possui caráter abortivo, visto que atua para impedir a nidação, ou seja, a formação do ovo, uma vez que a gravidez se dá com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide.
    
O Projeto de Lei nº 1904/2024 tem como objetivo acrescer parágrafos aos arts. 124, 125, 126 e 128 do CP. O teor dos parágrafos tem a mesma finalidade: agravar o crime de aborto, até mesmo impossibilitar a aplicação da excludente de punibilidade, prevista no art. 128, CP, cuja normatividade implica a não punição do aborto, mesmo praticado por médico, primeiramente se a gestação ocasiona perigo e vida para a parturiente, não havendo possibilidade de outro meio para salvá-la, ou, ainda se a gravidez resulta de estupro, sendo o aborto precedido de consentimento da gestante, ou, se esta for incapaz, do seu representante legal.

Os parágrafos estabelecem essas restrições, em caso de haver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas. Ocorrendo essa situação – presumida – a sanção a ser aplicada é a do crime de homicídio simples, com previsão no art. 121 do Código Penal. Aí é que está o grave problema do PL do aborto. As justificativas não conseguem justificar essa mudança, que se confunde e fere os princípios da adequação e proporcionalidade, ao não aplicar da excludente do crime, em se tratando de aborto necessário, de feto anencefálico, ou aborto humanitário, este em caso de gravidez decorrente de estupro, em que a mulher tem vilipendiado a sua dignidade como ser humano, ao ser violentada pelo estuprador.

Mas qual o bem jurídico protegido no delito de aborto? É o feto? Ou o nascituro como pessoa, conforme acentua a justificativa do PL? Fernando Capez responde a essas questões, fazendo-o em linguagem simples: “No autoaborto só há um bem jurídico tutelado, que é o direito à vida do feto. É, portanto, a preservação da vida humana intrauterina. No abortamento provocado por terceiro, além do direito à vida do produto da concepção, também é protegido o direito à vida e à incolumidade física e psíquica da própria gestante.” (In: Capez, Fernando. Curso De Direito Penal - Vol. 2 - Parte Especial Arts. 121 a 212 - 24 edição 2024 (p. 254). SaraivaJur. Edição do Kindle)

Embora na justificativa do PL do aborto conste que “o legislador de 1940 entendeu que o nascituro era uma pessoa no sentido jurídico do termo”, essa afirmação é um grave equívoco, com ares de sofisma. Explica-se: o art. 2º do Código Civil é esclarecedor a esse respeito, porquanto ressalva que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, não o considerando pessoa, dotado de personalidade jurídica. Essas incongruências jurídicas maculam o PL do aborto, nº 1904/2024, em tramitação de urgência no Congresso Nacional. É um retrocesso, a relembrar o PL do famigerado deputado federal Eduardo Cunha, agora apensado a essa nova proposta incriminadora.

Este texto se alonga e é preciso que seja finalizado. Recorro, pois, à psicóloga clínica e da saúde, Dra. Shyrlene Brandão, que, no jornal O Imparcial, publicou, em 21 de junho de 2024, p. 2, um brilhante estudo sobre esse controvertido tema, quando entre várias afirmações, diz que “PL 1.904/2024 criminaliza quando deveria proteger, pune quem deveria tratar de forma digna e humanizada. Não trata as causas, que é responsabilidade do Estado, mas propõe punição de meninas e mulheres que deveriam ter direitos assegurados à vida, à dignidade, a não ter seu corpo violado, e, caso isso ocorra, a ter os cuidados previstos na Carta Magna Brasileira...”

Concordo em gênero, número e grau. A lei não deve escravizar, mas deve ter um sentido ético de humanização. É feita para o ser humano. E não para alguns segmentos, que se arvoram o direito de ser maioria. De mais a mais, o STF tem, quando provocado, se posicionado em alguns pontos pertinentes, como ocorreu, em 2016, ao decidir historicamente sobre o tema que envolve a concepção e o início do parto, sob o fundamento de que o aborto, praticado até o terceiro mês de gestação, não deve ser considerado crime. Nesse sentido, foi a decisão no HC 124.306. Fico por aqui.

• Membro da AML e AIL
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