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03/06/2023 às 00h00min - Atualizada em 03/06/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

D. Santa e a  esta do Divino

O passado é eterno. Tudo passa menos o passado. Ele fica ali, bem ao nosso lado, a dizer: - não esqueça, eu estou aqui. Ainda ontem, domingo, dia 28/05, indo à banca de jornais e revistas, que já não são bem bancas, mas ponto comercial de venda de secos e molhados e quinquilharias, e vi exposto para venda a revista Seleções – Reader’s Digest, com um visível selo, posto acima, na capa, do lado direito, em comemoração aos seus 80 anos de circulação e venda no Brasil, porquanto teve início da sua circulação no mês de fevereiro de 1942. Não tive dúvida. Adquiri a edição comemorativa desses oitenta anos de vida entre nós. E por quê? Li Seleções durante um bom tempo, principalmente no meu período ginasiano, porque precisava inteirar-me dos acontecimentos, uma vez que fazia o curso ginasial à noite, e os meus colegas da turma 11, do Ginásio Getúlio Vargas, cujo diretor era o professor Antônio Martins Araújo, eram todos bem mais velhos que eu. Tinha em torno de 11 anos de idade. Por isso mesmo, lia Seleções, Visão, e, depois, mais na frente, Realidade. O exercício da profissão de linotipista, por cerca de mais de dez anos, contando o aprendizado e o profissionalismo, contribuiu para intensificar a minha leitura, e, portanto, meu apego aos livros. Aos poucos, a leitura de Seleções foi sendo deixada de lado, embora tivessem seções que cativavam o leitor, como “Meu Tipo Inesquecível”, bem como as piadas inteligentes e citações no final de cada matéria. Mas havia sempre, e não poderia deixar de ser, uma reportagem ou coisa parecida, em que um dissidente conseguia fugir da China ou da então União Soviética. Nessas matérias, estava a denúncia dos malefícios do regime comunista.

Pois bem, feita essa introdução desse passado, sempre presente, guardado na memória dos fatos inesquecíveis, ao fazer a leitura da passagem do Evangelho de João, no dia 28/5, em que Jesus encontra os seus discípulos e, ao soprar sobre eles, disse: - “Recebei o Espírito Santo” e os mandou ir pelo mundo sob esta advertência: - “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; e a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos.” O padre, ao fazer a homilia, enfatizou a presença do Espírito Santo entre nós, no sentido de que Jesus ressuscita e vai ao Pai, ficando conosco o Espírito Santo, a nos proteger e nos iluminar na nossa árdua caminhada. De logo, o passado, por ser eterno, se faz presente, e me veio à lembrança, como se fosse um clarão de um despertar, uma oração que fazíamos no Cursilho da Cristandade, quando dele participava como um dos rolistas. Ela dizia: “Vinde Espírito de Deus / e enchei os corações / dos fiéis com vossos dons. / Acendei neles o amor / como um fogo abrasador, / vos pedimos, ó Senhor.” E ia mais adiante, com algumas outras exaltações ao Espírito Santo. Não compreendia, porque sempre me fixava no Deus Jesus, até porque é ele próprio quem afirma: - Eu estou no Pai e o Pai está em mim. Além de que os mandamentos fundamentais para a vida são: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Cumprindo-se essas determinações, que reprovam, como ato indigno, o racismo defendido pelo senador evangélico Magno Malta, o qual prefere enaltecer o macaco ao defender ser humano, o mundo seria efetivamente cristão. E não se teria, em alguns casos explícitos, o cristianismo de fechada.

E como o passado é eterno e está, por isso mesmo, sempre conosco, não havendo amnésia para tudo o que passamos na vida, registramo-lo em fatos e sentimentos, desde a tenra infância, lá no engatinhar e ao recebermos os primeiros aconchegos da mãe. Nem o perdão faz o passado morrer, no esquecimento do passar a limpo no que ocorreu de malfazejo.

Por essas razões, não me escapou do passado a festa do Divino Espírito Santo, agora vista por mim como uma força de profunda religiosidade. Vejo a imponência do mastro, erguido sob o rufar dos tambores das caixeiras e do canto fervoroso das orações, que ressaltavam a força do Divino Espírito. Toda essa manifestação religiosa tinha o comando de D. Santa, moradora da Vila Macaúba. E tudo começava com o levantamento do mastro. Nesse dia, ao fim da tarde e ao cair da noite, as caixeiras do Divino, se perfilavam em torno do mastro que seria erguido por fortes e voluntários trabalhadores braçais, sob o balançar da bandeira e ante a imagem da pomba, a representar o Espírito Santo, quando esteve entre os homens por ocasião do batismo de Jesus por João Batista, este mártir da Igreja, precursor de Cristo. Depois de erguido o mastro, bem alto, convenientemente enfeitado, cercado do calor das velas acesas, se iniciava o festejo do Divino na pujança e com muita religiosidade. Antes desse início, as caixeiras do Divino faziam um trajeto pelas casas e pediam a ajuda para que a festa santa fosse realizada. Cada um, de acordo com as suas posses, dava alguma coisa: um saco de arroz, um porco, uma galinha, ou algum trocado. Nada faltava. Era a religiosidade viva, do povo, sem regras fundamentalistas, a não ser a fé. Fé no Espírito Santo.

A véspera do dia final do festejo do Divino, muitas rezas e orações em frente ao belíssimo altar. Durante todo o dia, poder-se-ia ser prisioneiro da imperatriz. Sim. Havia uma jovem que era escolhida para ser imperatriz e um jovem, para imperador. Quem mais se destacava era a imperatriz, que podia nos aprisionar no mastro até pagarmos uma prenda em benefício do festejo. Tive uma amiga, filha de D. Deja, operária da Fábrica Fabril, que fora imperatriz. Isso era uma prova de que a filha de trabalhadora de fábrica poderia, sem discriminação, ser destaque na festa do Divino.

Rompíamos a aurora no dia do Divino Espírito Santo. Bem cedo, íamos para a Igreja São Pantaleão, onde seria, pelas 6h da manhã, rezada a missa. Terminada a missa, saía-se em procissão pela rua São Pantaleão até chegar, driblando os intrincados becos, subidas e descidas, à Vila Macaúba: à casa de D. Santa. Antes, a procissão era recebida, de passagem, pela Casa das Minas. A umbanda ou candomblé estava à porta, desfraldando-se as suas bandeiras vermelhas, num alegre esvoaçar, a recepcionar, ao som vibrante do rufar dos seus tambores e, com fé e amor, o Divino Espírito Santo. Essa religiosidade, esse sincretismo religioso me deixava repleto de imensa alegria. Havia amor, solidariedade, religiosidade, e não apenas religião, conspurcada pelo fundamentalismo do “eu estou salvo”.

A festa do Divino Espírito Santo, na Vila Macaúba, tendo à frente D. Santa, contribuiu para a formação da religiosidade de muita gente, entre as quais, sem nenhuma dúvida, me incluo. Não sei se estou salvo. Mas tenho uma certeza: cumpro o mandamento do amor ao próximo. É mais que suficiente para compreender e suportar os transtornos dessa nossa, hoje, conturbada vida.

* Membro da AML e AIL
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