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17/12/2022 às 00h00min - Atualizada em 17/12/2022 às 00h00min

Verdes campos de minha terra

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Por todos esses dias, não me saía da mente, como se fosse uma benigna obsessão, este belo verso da canção de Belchior: “Viver é melhor que sonhar.” Indaguei-me o porquê dessa lembrança obsessiva e não encontrei resposta. Pairou sobre mim um silêncio absoluto. Para não sofrer um trauma psicológico, procurei aquietar-me no meu cantinho de reflexão. Depois, veio a mim, como um clamor íntimo, este verso de Fernando Pessoa: “Estou só e sonho saudade.” Tive cuidado: não fiz indagações íntimas, mesmo porque considero esse verso de uma imensa profundidade metafísica, encontrando-se dentro do contexto desta estrofe: “Estou só e sonho saudade. / E como é branca de graça / A paisagem que não sei, / Vista de trás da vidraça / Do lar que nunca terei.” É o bardo lusitano a nos dizer, embora já o tenha dito, que nem sempre o poeta é um fingidor. Da sua poética transcende verdades intraduzíveis. Mas verdades, como o sentimento de estar só e sonhar saudade.

Por que o título “Verdes campos de minha terra”? Esclareço: trata-se de uma canção que, nos anos 60, fez sucesso na voz de Agnaldo Timóteo, ex-motorista de Ângela Maria, que se consagrou como um dos maiores intérpretes da música popular brasileira. Alguns eruditos, ou falsos eruditos, chegaram a, depreciativamente, alcunhá-lo de cantor brega. Preferiam ouvir Frank Sinatra ao nosso cancioneiro tupiniquim. Essas pessoas sofisticadas nunca foram às festas de radiola. Reitero: radiola doméstica. Não bem uma três e um. Com um som mais abrangente, em que valia a pena não só ouvir, mas aconchegar-se à moça desejada, do sorriso aberto e um tanto acabrunhado, e sair pela sala dançando, abraçadinho, sob o eflúvio de uma boa canção da moda, o sucesso repetido tantas vezes durante a noite e o início da manhã que se avizinhava no transpor da meia-noite. Depois, restavam os comentários de quem dançou com quem, ou se deu ou não algum flerte inicial. As interrogações se sucediam nas mesas improvisadas dos bares da vida. Recanto, onde a vida se diluía em conversas triviais, com alguma pitada de seriedade, se o assunto envolvesse o pretenso amor, ainda não alcançado pela timidez de uns, ou da agressividade de uns poucos metidos a ser frustrados Dom Juan daquele pacato bairro, ou daquela rua que sonhava as grandes paixões das fotonovelas: Capricho, Ilusão, Sétimo Céu. E outras publicações.

Mas o certo é que, num dia que vai bem longe, perdido nas brumas dos nossos sonhos, ou melhor, numa noite de uma sexta-feira, muito propícia às grandes aventuras, eis que, nos brindavam, logo em seguida, o bendito sábado e o domingo, após dar aula num curso em que lecionava, desço pela minha querida Belira, uma rua extensa, traçada pela poesia dos seus moradores e ladeada por casas simples, cuja porta de entrada para mundo é a Rua do Passeio, indo até a Vila da Macaúba, e sempre percebida na poesia destes versos, feitos por Vinícius de Moraes e Chico Buarque, para compor a bela música, Gente Humilde, do grande violonista Garoto, os quais expressam o sentimento das pessoas humildes que vivem na solidariedade do amor: “São casas simples com cadeiras na calçada / E na fachada escrito em cima que é um lar / Pela varanda, flores tristes e baldias / Como a alegria que não tem onde encostar/ E aí me dá uma tristeza no meu peito / Feito um despeito de eu não ter como lutar / E eu que não creio peço a Deus por minha gente / Que é gente humilde, que vontade de chorar.“ Desci, nessa noite, a Belira, onde sabia que encontraria a patota, para mais uma aventura. Aliás, devo dizer, estou sempre descendo a Belira e, ao fazê-lo, me vêm impostos pela lembrança esses versos de Gente Humilde: “Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / Porque parece que acontece de repente / Como um desejo de eu viver sem me notar.”

Fazendo todo esse caminhar no tempo e nos sonhos, encontro a turma, na esquina do comércio do Eloy. Vinha eu sobraçando uns livros, que os usava para dar aula. Disseram-me, com a ênfase da persuasão imediata: - Vamos para Paço do Lumiar. É a festa do Divino. Vai ter tudo. Muita bebida. Reza. Caixeiras. E baile. O caminhão está aí aguardando para nos levar.

Não tive a mínima dúvida. Deixei os livros sob a guarda do nosso amigo Eloy, dono da base onde costumávamos iniciar as nossas inocentes farras, que duravam até uma parte da noite, já que ninguém é de ferro. Enfim, sem pestanejar, fui para luta, a vida é combate, e aceitei o convite. Patota devidamente de prontidão: Zé Diniz, Flávio, Senhor, Murilo e este amigo que vos fala. Antes da meia-noite, chegamos ao local do evento. Ainda era sexta. Constatei que o prefeito (Olavo) era nosso amigo; o coletor, também, e, do mesmo modo, o Delegado de Polícia. Não teríamos nenhum problema, contanto que bebêssemos e as despesas fossem fielmente pagas. Para melhor usufruir das delícias daquela principesca acolhida, ficamos sob a proteção de uma bela árvore – talvez uma mangueira -, cujos galhos e robustas folhas se espraiavam até perto da entrada do bar. Com algum exagero, claro. E passamos o pouco que restava da sexta, entramos pelo sábado e saímos no domingo, quando a tarde estava chegando. A música que servia de fortalecimento das nossas energias era Verdes Campos de Minha Terra, cujos primeiros versos, de Geraldo Figueiredo e Curly Putman, tinham a força de motivar qualquer fundamentalista religioso: “Se algum dia à minha terra eu voltar / Quero encontrar as mesmas coisas que deixei / Quando o trem parar na estação / Eu sentirei no coração a alegria de chegar  / De rever à terra em que nasci / E correr como em criança / Nos verdes campos do lugar / Quero encontrar a sorrir para mim / O meu amor na estação a me esperar / Pegarei novamente a sua mão / E seguiremos com emoção / Nos verdes campos do lugar.” Depois de tudo isso, o óbvio: parece que o passado ficou lá para trás. Nem tanto. O tempo é um eterno desafio do viver. Viver é lutar, no canto poético de Gonçalves Dias. E o passado nem sempre é passado. Insisto e repito obsessivamente Faulkner: – O passado nunca morre. Sequer é passado. Fui para o Rio. Tive saudade dos verdes campos de minha terra. Voltei exultante. E ainda sonho saudade.

* Membro da AML e AIL
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