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24/07/2021 às 00h00min - Atualizada em 24/07/2021 às 00h00min

O médico e o monstro

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


É célebre mundialmente a obra literária de Robert Louis Balfour Stsvenson, filho de uma família aristocrática, de pais presbiterianos, cuja cultura confessional, de extremado radicalismo, criou freqüentes conflitos entre Stevenson e a família, o que fez com que optasse por uma vida boêmia, aderindo mais a liberdade, sem os entraves de quaisquer crenças, e dedicando-se à escrita. Da sua criação literária, nasceu O médico e o monstro, com a construção de dois personagens – Dr. Jekyll e Mr. Hyde: o médico e o monstro, encarnados numa mesma pessoa, justificados pelo narrador Jekyll: “Antigamente, um homem contratava bandidos para executarem seus crimes, protegendo, desse modo, sua própria pessoa e reputação. Fui o primeiro a fazê-lo por puro prazer. Fui o primeiro a poder passear diante dos olhos do público com a carga de uma sociável respeitabilidade e, no momento seguinte, como se fosse um menino, um estudante, despojar-me desse peso emprestado e lançar-me de cabeça no mar da liberdade. Mas para mim, em meu impenetrável manto, a segurança era completa. Imagine... eu nem mesmo existia!”

O mundo está cada vez mais povoado de Drs. Jekyll’s e Mrs. Hyde’s. Muitos vivem esse dublê insano, doentio. Ora são bondosos e dedicados médicos; ora se transfiguram no demônio, a cometer os mais hediondos crimes. Duas antitéticas personalidades convivendo numa só pessoa.

Doutor Mengele, médico nazista, fez esse papel, ora de médico, ora de monstro. Na obra memorialista, A noite, do escritor judeu Elie Wiesel, que lembra a tragédia humanitária do holocausto, em que os judeus eram escravizados e assassinados nos campos de concentração, consta esta passagem, quando esse médico, oficial S.S., chegava para fazer a seleção daqueles que deviam morrer: “O vento de revolta se acalmou. Continuamos a andar até uma praça. No centro estava o doutro Mengele, o famoso doutor Mengele (oficial S.S. típico, rosto cruel, não desprovido de inteligência, monóculo), com uma batuta de maestro na mão, cercado de outros oficiais. A batuta se movia sem trégua, ora à direita, ora à esquerda. Logo eu estava diante dele: - Sua idade? – perguntou num tom que poderia parecer paternal. – Dezoito anos. Minha voz tremia. – Boa saúde? - Sim. – Profissão? Dizer que era estudante? – Agricultor – ouvi minha voz pronunciar.” Batuta para esquerda era vida; batuta para direita, morte, no crematório.  Mengele e outros médicos nazistas faziam esse doloroso papel de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. O dia da seleção era o veredicto final para os doentes e fragilizados, que já não poderiam produzir no trabalho escravo, ou o prosseguimento do sofrimento para outros, alimentados a pão e água, também denominada eufemicamente de sopa (grossa ou rala). E a morte ficava na espreita aguardando o seu momento de entrar em ação, sob a batuta de um médico que estivesse na função de maestro.

Na ditadura militar de 1964, que se estendeu por 21 anos, havia também essas figuras que supervisionavam as vítimas das cruéis torturas. Ora fazendo o papel de Dr. Jekyll, ora do monstro Mr. Hyde. O torturado ou a torturada desmaiavam e logo se fazia presente o Dr. Jekyll para auscultar se a vítima suportaria mais algumas sessões de espancamento ou choque elétrico ou ainda a extração de algumas unhas. Se agüentasse, o processo medieval de interrogatório prosseguiria; se não, ficaria para outro momento mais adequado.

A coisa era tão tétrica, que Vladimir Herzog, jornalista, no dia 25 de outubro de 1975, foi torturado até a morte, e, ainda assim, apareceu algum monstro, travestido de médico, que atestou o seu falecimento por suicídio. Vivíamos no tempo em que a regra investigatória era a tortura. Hoje, diferentemente do que ocorria naqueles dias, mata-se. Um método definitivo, pois o Estado não investiga mesmo. E fico o dito pelo não dito. Mas, ainda assim, com muita luta, a família do jornalista Herzog conseguiu, por uma ação judicial, que ficasse registrado, para responsabilização do Estado, que o seu assassinato por tortura no DOI/CODI/VII Exército. E tudo isso – e mais outras tenebrosas coisas – ocorreu no governo do general Geisel. Os livrinhos de história, que não têm compromisso com o tolo ufanismo da pátria amada e muito menos com a tortura e assassinatos, devem contar esses horrores típicos de filmes de terror. 

Às vezes fico pensando como é que um ser humano veste a roupa da incivilidade para defender a tortura e assassinatos, como meios de solução dos nossos problemas sociais e políticos, e isso em pleno século XXI, depois de passarmos pelas mais cruéis e devastadoras experiências Defendem a disseminação da crueldade, os assassinatos de Jacarezinho, o inútil tratamento precoce contra Covid, o desprezo pelos carentes de dignidade, de direitos e justiça, e, em outro momento, assumem o papel do Dr. Jekyll, ajoelham-se, rezam ou oram, ocupam cargos privilegiados, aceitam favores desses privilégios, como Judas recebem as moedas de prata, e, no dia seguinte, se travestem de Mr. Hyde. Com todas essas contradições, impossível se chegar a uma sociedade justa.

P.S.: Meus pêsames para as famílias enlutadas de P. Costa, oficial de justiça do meu tempo, um honrado servidor público, e Rubens Jardim, à época, como pequeno empresário, teve a lucidez de participar das grandes lutas democráticas.
 
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