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30/03/2022 às 18h53min - Atualizada em 30/03/2022 às 18h53min

A proteção de dados no contexto das eleições

Gilson Ramalho de Lima
* Advogado e Juiz do TRE-MA (Classe Jurista) - Foto: Divulgação
  
O desenvolvimento de paradigmas econômicos e sociais cada vez mais centrados no uso massivo de dados pessoais demonstrou a necessidade e a urgência de se equilibrar o seu potencial inovador e de maior comodidade com os direitos e as legítimas expectativas dos cidadãos quanto à segurança do fluxo de suas informações pessoais.

Em meio às inovações normativas acerca do tema, certamente destaca-se a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), promulgada por meio da Lei n.º 13.709/2018, sendo um marco em nosso país por consolidar, em uma legislação única e harmônica, uma matéria que era tratada de forma fragmentada e assistemática. 

A LGPD tem aplicação a qualquer pessoa, seja natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realize o tratamento de dados pessoais, sendo dados pessoais conceituados pela própria lei como toda informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável e dados pessoais sensíveis como todo dado pessoal que possa gerar discriminação.

Ou seja, não restam dúvidas que também se aplica aos partidos políticos e candidatos, sobretudo no contexto de ano eleitoral, em que há uma quantidade enorme de hipóteses de utilização de dados pessoais, mormente os dados pessoais sensíveis como opinião política ou filiação a partidos.

Diante dessa premissa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), entidade responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD, elaborou, em conjunto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um guia orientativo para aplicação da LGPD por agentes de tratamento no contexto eleitoral (https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/guia_lgpd_final.pdf).

O guia tem como fito, com base no diálogo da LGPD com os normativos eleitorais, orientar candidatos, partidos, federações, coligações, etc., a tratar de forma adequada os dados pessoais dos eleitores em potencial. Isso significa, primeiramente, compreender as responsabilidades de cada agente de tratamento de forma a se adequar à LGPD.

Ponto fundamental do guia e de observância de todos é a utilização das bases legais para o tratamento de dados, isso é, as hipóteses que a lei traz que autorizam os agentes a manipular os dados. O guia destaca três dessas bases legais a serem observadas com maior frequência no contexto eleitoral: o consentimento, a obrigação legal e legítimo interesse.

No primeiro caso, se houver consentimento do titular dos dados pessoais, o agente poderá tratar seus dados, desde que esse consentimento seja livre, bem informado e inequívoco. É o caso, por exemplo, do art. 34 da Resolução n.º 23.610/2019 do TSE, que veda a realização de propaganda por meio de disparo em massa de mensagens instantâneas sem consentimento da pessoa destinatária. Importante ressaltar que, se estivermos falando de um caso concreto de utilização de dado pessoal sensível, além do consentimento ser livre, bem informado e inequívoco, deve também ser obtido de forma específica e destacada em relação a outras comunicações mantidas com a pessoa titular do dado.

A segunda hipótese autorizativa de tratamento de dados é a utilização de dados pessoais da pessoa titular que sejam essenciais para garantir a execução de obrigações legais ou regulatórias. A título exemplificativo, cita-se o art. 19 da Lei n.º 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos), que prevê que, deferido internamente o pedido de filiação, o partido político, por seus órgãos de direção municipais, regionais ou nacional, deverá inserir os dados do filiado no sistema eletrônico da Justiça Eleitoral. Nesse caso, não há necessidade de consentimento do filiado para esse tratamento, haja vista se tratar de uma imposição legal.

A terceira base legal relevante em um processo eleitoral é o legítimo interesse, utilizada quando necessária para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiros, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais. Esse legítimo interesse somente poderá fundamentar tratamento de dados pessoais para finalidades legítimas, consideradas a partir de situações concretas, que incluem, mas não se limitam, a apoio e promoção de atividades do agente de tratamento e proteção, em relação ao titular, e do exercício regular de seus direitos ou prestação de serviços que o beneficiem. Importante frisar que, quando se tratar de dado pessoal sensível, não se pode invocar o legítimo interesse como base legal.

Destaca-se que, independentemente da hipótese autorizativa para tratamento de dados pessoais, os agentes devem obedecer estritamente aos princípios previstos na LGPD, sob pena de tratamento ilegal com as devidas sanções. No contexto eleitoral, destaca-se com maior relevância três desses princípios: finalidade, adequação e necessidade.

O princípio da finalidade determina que a realização do tratamento deve ter propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades. O princípio da adequação determina a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento. E o princípio da necessidade impõe a limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados.

Do ponto de vista do eleitor em potencial, isso é, do titular de dados pessoais, o guia elaborado pela ANPD e TSE elenca alguns direitos que podem ser exercidos por essas pessoas, previstos no art. 18 da LGPD.

Apesar de ser um rol exemplificativo, destacamos, pelo aspecto eleitoral, alguns direitos, tais como: a confirmação da existência de operações de tratamento envolvendo seus dados pessoais, a possibilidade de correção de dados eventualmente incorretos e, ainda, a revogação do consentimento concedido para uma determinada operação. Os direitos previstos neste artigo serão exercidos mediante requerimento expresso do eleitor, ou de representante legalmente constituído, ao agente de tratamento.

O guia traz, por fim, orientações previstas no art. 46 da LGPD, isto é, os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito.

Isso significa aprimorar todo o sistema de segurança da informação do agente, capacitar todos os seus colaboradores e indicar o encarregado de tratamento de dados pessoais do órgão (Data Protection Officer – DPO), pessoa indicada pelos agentes aqui citados para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

O guia não traz algumas situações a serem enfrentadas ainda pelo TSE e TRE’S de todo o país e deixa claro isso, afirmando que eventual imprecisão ou omissão poderá ser sanada em próximas versões do guia.

É o caso, por exemplo, dos limites do Sistema DivulgaCandContas, um sistema disponibilizado na internet que possibilita o acesso pelas pessoas interessadas de informações detalhadas sobre todos os candidatos que pediram registro na Justiça Eleitoral, como nome completo, nome escolhido para a urna, partido, declaração de bens e certidões criminais.

Em um caso concreto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por unanimidade, determinou a retirada, do Sistema DivulgaCandContas, dos dados pessoais de candidato eleito suplente de vereador pelo município de Guarulhos (SP) nas Eleições de 2020.

No caso específico, o Colegiado acompanhou o voto do relator, ministro Edson Fachin. O relator ressaltou que a jurisprudência do TSE permite a restrição à divulgação dos dados pessoais e patrimoniais de candidatos derrotados no processo eleitoral, uma vez que o direito à intimidade prevalecerá sobre a publicidade eleitoral, por inexistir interesse na permanência da exposição. Porém, tal entendimento não atinge os suplentes de cargos proporcionais, que, ao menos em tese, podem vir a assumir o cargo ao qual concorreram. Embora essa fosse a situação do caso em comento, o Ministro deferiu o pedido do suplente em decorrência das ameaças sofridas por ele durante o processo eleitoral.

Outro ponto que deve ser abordado pelo TSE é o sigilo sobre doadores de campanhas eleitorais e prestadores de serviços nas campanhas com base na LGPD. Novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Edson Fachin disse em fevereiro, em entrevista coletiva, que a Corte não vai impor sigilo sobre doadores de campanhas eleitorais e prestadores de serviços nas campanhas em sua gestão. Mas a discussão ainda pode ocorrer ao longo do processo eleitoral de 2022.

O fato é que a salutar cooperação entre a ANPD e TSE, longe de exaurir o debate, trouxe, com seu guia, maior segurança jurídica para todos os envolvidos no contexto eleitoral. Importante aspecto a ser considerado, sobretudo com a Emenda Constitucional n.º 115, que incluiu o direito à proteção dos dados pessoais como direito fundamental, é entender que a LGPD será elemento importante de fortalecimento do processo democrático, na medida em que assegura maior proteção à direitos e garantias fundamentais.

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