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11/06/2022 às 00h00min - Atualizada em 11/06/2022 às 00h00min

QUANDO NÃO TEM FARINHA

(quirera serve)

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

 
Quando o meu bisavô FABINHO DE BARROS faleceu (a quem não conheci), deixou bens à herança dos seus filhos, sendo a que a dois deles coube uma expressiva área de terras. NORATO BARROS e meu avô DOCA BARROS. Honorato, com a metade ficou à frente, enquanto DOCA, ficou com sua herança, à parte de trás. Narram os mais antigos que os dois irmãos era muitíssimos unidos e que nunca divergiram em absolutamente nada!

Doca, meu avô, tinha uma vocação pela fartura e dedicou-se por toda a sua vida útil em fazer paióis de viveres: arroz, farinha, feijão, peixe seco. Também tinha um cafezal e um canavial tão somente para o consumo doméstico. Seu terreiro era farto em galináceos e patos estes à tarefa da minha avó. Ao terreiro de sua casa possuía uma EIRA que era uma espécie de “sequeiro” que destinava-se à secagem de milho arroz e outros. Do outro lado do caminho, próximo da morada, tinha uma casa de farinha – que ali chama-se “casa do forno”.

Também criava porcos e dispunha sempre de um jovem animal, domado e treinado aos seus serviços. Era um homem “desaperreado” como era de se dizer. Até porque ter um pequeno cafezal, um canavial, um bananal, uma “EIRA” e um “casa do forno” (casa de farinha), isso não era coisa para qualquer um por aquelas bandas. Ainda por cima, o senhor meu avô sabia ler e gostava de reler seus velhos e surrados livretos de cordel – que ele os chamava de “romance”, que costuma ler nas alturas para quem quisesse e quem não quisesse ouvir. No que ele se comprazia. E por vezes sorria. Ainda me lembro de três deles: Donzela Teodora, A luta de Cego Aderaldo e Zé Pretinho e Coco Verde e Melancia. Basta rever  esses três títulos do cordel e eu vejo o rosto do meu avô. Acreditem!

Em situando o seu lugar de morada, à beira do caminho mas dentro do mato, meu avô cuidou de plantar ao redor de sua casa um sítio frutífero: limão, laranja, tangerina, caju, manga, banana (bananal), café(cafezal)  e...  à beira de sua casa, plantou o que vieram a ser frondosas e “carregadas” limeiras – cujas limas, graúdas e amarelíssimas eram as preferidas do meu avô. Eu achava aquele fruto salobro (sem gosto) e que facilmente tornava-se amargo. Não gostava. E tinha aversão às limas - as preferidas do meu avô.

E então a “netarada”, comigo pelo meio, dando de ombros e fugindo das limas, atacava de com força nas laranjas, mais azedas, mais ácidas e portanto mais fortes – que eram  as frutas da molecada. Faminta e danada! E então eu, moleque, me perguntava: Por que então que meu avô gostava dessas tais limas, se essas tais limas além de salobras, amargavam com facilidade?

Tantos anos se passaram (tantos anos se passaram) e eu plantei por aqui um sítio frutífero com trinta espécies de frutas diferentes e muita laranja. Mas não me esqueci de plantar alguns pés de lima para homenagear a memória e as saudades do meu avô. Que resultaram frondosos e maravilhosos. E frutas graúdas quais as limas do meu avô. Daí então passei a consumi-las. E fui gostando e me acostumando, me adaptando. E só então encontrei e descobri a identidade que tinha o meu avô com aquelas limas. E com elas, então, passei a me identificar.

Hoje não tenho mais esse sítio em tantas fruteiras e tantas frutas. Agora, a cada temporada vou às feiras livres, aos supermercados e vou por aonde vou, sempre à procura das tais limas, a fruta do meu avô. Vejo que umas se assemelham outras nem tanto e, como sempre nunca se igualam. Vejo também que quase todas elas umas que se aproximam, outras que nem isso mas que todas  me despertam a inspiração para escrever um texto ao lembrar a memória e o semblante do meu velho avô, Doca Barros.

Agora mesmo, acabo de ganhar uma caixa de uns vinte quilos dessa fruta. Só para mim. Olho para essa fartura e mais uma vez estou frente a frente ao meu avô. Tais frutas não têm a mesma qualidade nem aquele velho sabor. E, finalmente concluo como numa antiga lição: ”Quando não tem farinha quirera serve”. Que aliás dizia-se: ”Quando não tem farinha, “caroeira” serve”. E vejo o quanto tempo torce e retorce a gente!!!
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BIOTÔNICO  E TUTANGIR

A minha avó, na velhice, queixava-se constante de “fraqueza dos nervos”, por isso estava sempre às volta com os seus remédios para os nervos. Um deles, da farmácia popular, era o BIOTÔNICO FONTOURA. Aquele nome soava forte entre os netos.  A gente, moleque, acabou por descobrir que o BIOTÔNICO da minha avó  tinha uma composição alcoólica (um gostinho de cachaça) e, por isso a gente, volta e meia...  no maior furto da paróquia estava ia ponta de pé e “desinterava” o Biotônico de Dona Inez. E se ele soubesse? E se o meu pai soubesse? Aí... a taca tinha serviço!

Não se porque cargas d’água, na prateleira da minha avó o BIOTÔNICO deu lugar ao “TUTANGIR – Tutano de boi”. Um nome que soava forte! Um pelo outro era o mesmo sabor, o mesmo gostinho de bebida alcoólica. Aí... quando não tinha ninguém em casa, a gente ia ponta de pé (ponta de pé) e... dava uma “gorpada”. E ainda dizia um para o outro:  “tô bêbo, tô bêbo”. E, na simulação, ainda saía cambaleando. E se a minha avó soubesse? E seu o meu pai soubesse? A taca tinha serviço... Vejo agora o quanto o tempo torce e retorce a gente.

* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho
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