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28/03/2024 às 22h56min - Atualizada em 28/03/2024 às 22h56min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

AÇOUGUE – MERCADO E FILA

Guardo comigo, perdido na mente, uma velha frustração que doeu e marcou mas que o tempo, um implacável divisor de águas, acabou por dissuadir. Eu era moleque, sete anos  de idade, quando deixei a casa paterna para buscar a escolaridade na VILA. Foi quando deixei minha mãe chorando, pelos cantos da casa. Na estradinha de  quase uma banda da manhã, eu ficava “vendo e ouvindo” o ressentido choro de mamãe. Nem ela nem eu sabíamos que eu só votaria ali em temporárias visitas. E olhe lá!

Na VILA, a vida ali era um reformatório. Uma oficina em ferro e fogo.  E foi nessa oficina em ferro e fogo, ao curso de quatro anos que muito fui construído para ter mãos limpas. E tenho! Dos meus princípios em peito aberto, não  arredo. Nesse convívio doméstico, além da escolaridade vigiada e sob cobrança, tive também várias tarefas obrigatórias. e Implacáveis. É aqui onde entra o MERCADO, O AÇOUGUE E A FILA.

Todas, senão quase todas as manhãs, “ir comprar carne no mercado”, era uma obrigação. Tantas vezes e como sempre,  ao chegar  ao prédio do MERCADO,  este encontrava-se ainda fechado. Aquele odor característico do ambiente era, para mim uma tortura psicológica, terrível! E então, aguardava-se em “fila”, pelo lado de fora, até  a chegada do encarregado. Nessa maldita fila, com  suposta preferência por VEZ DE CHEGADA, a molecada, punha tijolos, pedaços de pau, pedras, galhos e outros bregueços para marcar o seu lugar e garantir a sua vez.   Era uma fraude, um engodo. Um faz de conta.  Os mais forte enganavam os demais, assim como eu.

E, quando a porta se abria voávamos rumo ao “talho” (ao Box). Os mais fortes furavam a fila e então os “pixotes”, assim como eu, sobrávamos para o fim da fila. Era um drama-nosso! Até hoje (até hoje) em lugar/es outro/s - tijolos, pedaços de pau, pedras e bregueços, marcam lugares nas filas da vida, enquanto os espertos saem por ai a palitar os dentes, ficando os Manés no “rabo da fila”, dando murro na parede e falando sozinho.

Por vezes dava sete e meia e a carne não chegava ao mercado e os moleques convidavam-se entre si: “Vamos na matança, vamos na matança”. E aí tocavam-se aos bandos rumo à matança (ao matadouro). E quando chegávamos ali, aos bandos, muitas vezes o gado mal havia acabado de chegar. Então eu me via na  espontânea constrição de assistir ao espetáculo da morte brutal do animal. Aquilo me marcava profundamente. Era outra tortura psicológica.

Na volta para casa, aos oito, nove anos, aquela “carne” pendurada ao gancho, arrastava-se sobre as minhas pernas em calças curtas. E tinha que correr para o banho para, muitas vezes chegar já atrasado à Escola. Uma permissão que só acontecia por que eu morava na casa da Diretora do Grupo Escolar e, ainda assim sob olhares de censura de outras professoras pela exceção que ali se praticava. Mal sabiam as censoras que ali  naquele atraso/demora, havia uma dura marca: AÇOUGUE, MERCADO E FILA.

 E só mais tarde (mais tarde),  vim a entender aquele despacho fatal do marchante, dono do gado, quando dizia: ”ACABOU A CARNE!” . Era quando a restança do povo se dispersava e saia cabisbaixo, com as mãos vazias. É que a carne boa (de primeira), que ficava enrustida num côfo, debaixo do balcão, seria depois servida ao Prefeito, ao Juiz, ao Promotor, ao Cartório, ao Empresário que recebia os políticos da capital e a alguns outros do mesmo peso. Mas é como o meu pai dizia: “Quem puder que bata. Que não puder que apanhe”. Era eu ali, vivendo as agruras entre O AÇOUGUE E O MERCADO e aquela MALDITA FILA DE MENTIRA, POR VEZ DE CHEGADA. E então, tome nota!

* Viegas interpreta e questiona o social.
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