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28/03/2024 às 22h47min - Atualizada em 28/03/2024 às 22h47min

Crônica da cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

A Violência como Tragédia 

Primeiro ato da tragédia:

“Era Semana Santa, e uma ação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) aterrorizava o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Quando policiais cruzaram com um grupo de homens armados na Rua 2, teve início mais um episódio de guerra que domina o morro. Os tiros anunciavam, às quatro da tarde da quarta-feira, o fim prematura da Quaresma. Quando silenciaram, já na quinta-feira santa, tinham calado também quatro vidas. Entre elas a do menino, Eduardo de Jesus, de 10 anos, que estava na porta da casa quando levou um tiro de fuzil na cabeça. Foi assassinado por um policial, que virou as costas sob a pecha de ‘covarde!’ e sob o choro desesperado de uma mãe.”

 
Segundo ato da tragédia:

“Elizabeth de Moura Francisco, de 41 anos, também estava em casa quando foi baleada. Era funcionária de uma creche no alto do morro. Sua filha Maynara, de 16 anos, acabou atingida no braço. As duas foram levadas para o hospital às pressas, mas só a menina voltou para casa. O jovem Mateus Gomes de Lima, de 18 anos, foi executado na Rua Canitar, numa troca de tiros em que o adolescente Davyson Monteiro da Silva, de 15 anos, também acabou baleado, mas não resistiu aos ferimentos. Já Rodrigo de Sousa Pereira, de 24 anos, nem chegou a receber socorro. Levou um tiro na cabeça e permaneceu estendido no chão, com o sangue melando a sola dos coturnos e dos chinelos dos moradores que se aglomeraram em sua volta.”

Afirma a estatística que 70% dessas mortes violentas, com característica de execução (tiro na cabeça), são de policiais militares, sob a justificativa de combater o crime, que se alastra de forma insana e incontida em todas as sociedades do mundo. Especialmente a nossa. As duas cenas acima estão minuciosamente descritas, e com outros detalhes mais horrendos, numa matéria de fundo da revista Super Interessante, edição 346, de maio de 215, publicada sob o título Já existe pena de morte no Brasil. O texto investigativo traz alguns dados que abalam a consciência de qualquer pessoa, ainda que semicivilizada. Pensemos um pouco: a cultura do extermínio faz parte do combate ao crime e se origina da época da ditadura militar, ganhando corpo com atuação do esquadrão da morte, comandado pelo famigerado delegado Sérgio Fleury; a redemocratização não teve força de mudar esse terrorismo de Estado, que se alastra pelo país inteiro; nas corporações militares existem grupos de extermínio, formados para vingar a morte de algum companheiro de farda, como ocorreu recentemente com a chacina de São Paulo, com o assassinato de pessoas inocentes (pois não foram julgadas), cuja investigação resultou em nada; os policiais mais novos são os mais contaminados por essa nefasta cultura, porquanto prevalece a impunidade, uma vez que as investigações são realizadas pelas ouvidorias da polícia e os julgamentos resultam em absolvição, sob a justificativa das excludentes de criminalidade, como a legitima defesa; esses assassinatos são celebrados entre os policiais, que se vangloriam entre si como se estivessem numa guerra e fossem elevados à condição de heróis; o policial, que mata, é valorizado pela corporação; todos os artifícios são utilizados para encobrir esses crimes hediondos – e ainda mais hediondos porque praticados por agentes do Estado -, como fazer uso de toucas de ninja, despejar os corpos das vítimas em cemitérios clandestinos, alterar a cena do crime, para que nada do ocorrido venha a público, como se deu com o caso Amarildo, ou forjar ser a vítima criminosa.

Nessa prática dantesca, a violência, de lado a lado, vai se alastrando como um vírus, cuja vacina para combatê-la não podem ser os assassinatos punitivos do Estado, o qual existe para pacificar e não para matar.

Numa perspectiva errônea, criou-se a ideia, e imbecilizada pela mídia sensacionalista, mas admitida por muitos, até com alguma cultura planfetária, de que bandido bom é bandido morto. Nessa concepção, pavimentada por sangue e vidas, de criminosos ou inocentes, o julgamento do infrator ou não é procedido em poucos segundos, a condenação é imediata e execução é realizada na rua, na porta da casa humilde do barraco, em presença da mãe, dos parentes, na sua maioria negros, na claridade da luz do sol ou da lua, ou, o que é pior, às escondidas, com o uso criminoso de subterfúgios para que o crime não deixe qualquer rastro. E é ignorado. Porém não é essa a função constitucional do Estado. Na lição do insigne e eterno professor Miguel Reale (In: Lições Preliminares de Direito, 2018, p. 273), “os direitos públicos subjetivos existem na medida em que o Estado não pode deixar de traçar limites a si próprio, enquanto Estado de Direito”. Sabe-se: a violência é geradora de violência. O assassinato de Marielle mostra o enfraquecimento do Estado, contaminado pelo nefasto capitalismo miliciano, no suborno lucrativo de agentes dos poderes da República. Pergunta-se: o que fazer então? A missão de toda sociedade é de dimensão revolucionária. Não há limites. Poderia responder: amar ao próximo. Seria uma resposta de uma simplicidade cristã desafiadora. Dar a outra face, como também ensinou Cristo, repugna aos beligerantes, que odeiam atos pacifistas. As respostas são muitas e dependem de todos nós. Mas, uma certeza: matar apenas para matar não é a resposta. Não há dúvida que a resposta exige de todos nós a luta sem trégua pela realização do Direito, não só como Norma, mas como Valor social e ético, revisando a nossa consciência e, em cada eleição, não trocar a cidadania do seu voto por favores imediatos. Enfim, lutar pela efetivação do Direito, exigindo do mandatário que sejam efetivados os direitos subjetivos públicos, na ordem política, social e jurídica. E mais: ter consciência de que o Estado e seus representantes, por nós instituídos, não prestam a nós meros favores; mas tão só obrigações republicanas. A luta pela realização do Direito, como Valor fundamental, não faz distinção entre quem tem e quem nada tem, ou pouco tem. Essa é a grande revolução a se fazer.
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