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16/03/2024 às 00h00min - Atualizada em 16/03/2024 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

O Avesso da Pele 

Como ensina o historiador Sir Owen Chadiwik, citado no prefácio dos autores do livro História da Igreja Católica, Edições 70, 2021, p. 20, o grande benefício que se pode retirar da história é que ela “faz mais do que qualquer disciplina para liberar a mente da tirania da opinião corrente”. A história, pois, tem uma grandiosa missão: fazer com que o passado liberte a mente da tirania da opinião presente, muitas vezes contaminada pelo fanatismo do momento.

O Avesso da Pele é um livro que foi posto no patíbulo do fanatismo moral, ou coisa mais ou menos parecida. Conforme foi amplamente noticiado, a censura a essa obra literária teve seu desfecho a partir do seguinte fato: “O livro “O Avesso da Pele”, do escritor Jeferson Tenório, está no centro de uma polêmica iniciada após a diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, em Santa Cruz do Sul (RS), pedir ao Ministério da Educação (MEC) o recolhimento dos exemplares distribuídos para alunos do ensino médio, alegando ‘vocabulário de baixo nível’ e ‘vulgaridade’ de termos utilizados na história. Desde então, estados inteiros estão retirando das escolas públicas exemplares do livro, que venceu prêmios literários e trata de temas como racismo e sexualidade. A diretora em questão, Janaina Venzon, expôs trechos que considerou inapropriados em um vídeo nas redes sociais, desencadeando uma série de reações políticas e sociais. Os defensores da obra afirmam que a educadora descontextualizou as passagens para gerar polêmica.”

A controvérsia é mais ou menos esclarecida nos detalhes que se seguem: “No vídeo, Venzon aponta passagens do livro que retrata questões raciais e sexuais. Parlamentares conservadores, como a deputada estadual Kelly Moraes (PL-RS) e os deputados federais Zé Trovão (PL-SC), Marcelo Moraes (PL-RS) e Bia Kicis (PL-DF), associaram a adoção do livro à gestão atual do Ministério da Educação e ao PT. Contudo, o livro foi incluído no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) por meio de portaria publicada em setembro de 2022, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Antes disso, a obra passou por uma seleção publicada em edital de 2019, também durante o governo Bolsonaro. (...) Paulo Pimenta, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, e Margareth Menezes, ministra da Cultura, fizeram críticas à tentativa de censura e aos ataques ao livro ‘O Avesso da Pele’. ‘Em minha opinião, trata-se de uma demonstração de ignorância, de preconceito, mas também de covardia por parte dessas pessoas’, disse Paulo Pimenta. Margareth Menezes também repudiou os ataques ao livro: ‘Meu total repúdio a qualquer tipo de censura em relação à nossa literatura. O que estiver no escopo do Ministério da Cultura, o que for possível fazer para apoiar, dentro da legalidade, para combater esse tipo de ação, nós faremos.’ A doutora em educação e professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Eugênia Portela afirma que a polêmica tem como contexto o conservadorismo na sociedade.”

Ignorância ou conservadorismo, ou ainda fanatismo moral ou de índole religiosa não retiram do livro O Avesso da Pele, cujo autor é Jeferson Tenório, vencedor do prêmio Jabuti, de 2021, o seu valor como obra de arte. Portanto, trata-se de uma obra literária reconhecida nacionalmente. O que se constata é a investida de uma censura patológica, travestida numa roupagem moralista, que não discute o teor artístico do romance, cuja narrativa tem uma construção recheada de poeticidade e de crítica aos antívalores sociais, entre os quais o racismo.

Apenas para ilustrar, transcrevo uma das passagens iniciais de O Avesso da Pele, em que se destaca a técnica empregada pelo romancista Jeferson Tenório, com frases ditas num diálogo que se processa entre o personagem narrador e um outro personagem anônimo, construído pelas suas qualidades e defeitos: “Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera. Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo de verdade. Não como um ponto de chegada. Mas como um percurso que vasculhe os ambientes e dê início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro um alguidar de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá, enrolada em guias de cores vermelhas, verdes e brancas, um orixá. Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida que já se foi.”

Uma belíssima narrativa: com frases bem elaboradas, imagens bem construídas, intimistas, ao descrever os sentimentos de ausência e presença do interlocutor da história: “Teu caos me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar.” Se há algum trecho mais cru, numa linguagem contundente, naturalista, foi extraído dolosamente do contexto, para justificar a censura arbitrária e indevida à obra. O mundo em que vivemos é outro; do mesmo modo, as fantasias de Iracema, a virgem dos lábios de mel, não mais existem.

O Avesso da Pele é tudo isso. Menos o que dizem seus censores. Com uma linguagem técnica e literariamente bem elaborada. Censurar a obra, como pretendem a “famigerada” professora e seus ignorantes adeptos, é um gravíssimo crime contra nossa literatura. Nossa história repudia esse tipo de tirania, imposta por essas forças negativas e, ainda bem, transitórias.

* Membro da AML e AIL
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