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03/02/2024 às 00h00min - Atualizada em 03/02/2024 às 00h00min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

TIQUARA:  – O NOSSO ALMOÇO

Para quem não sabe, a TIQUARA é um “alimento” sertanejo/nordestino, oriundo da escravidão. Uma composição de farinha com água que serviu de alimentação para o povo roceiro, de tempos idos.

A TIQUARA, um precário alimento desprovido de proteínas e fatores alimentícios, compõe apenas um “volume”, uma composição destinada à saciedade da fome dos caboclos roceiros, de velhos tempos. A TIQUARA costumava ser servida à hora do almoço, acompanhada de um pedaço ou “uma banda” de peixe seco, sendo este posto  de molho, antes do almoço, para dispersar o sal e tornar-se mais palatável e aceito  à precária mistura que era a TIQUARA COM PEIXE SECO, à serventia do almoço.

Imaginemos, então a cena desse almoço que se dava pouco depois do meio dia, após a conclusão e um eito (ou tarefa) no roçado, com o sol escaldante nas alturas. O Almoço era servido para cinco, seis ou mais pessoas, dentro/debaixo de um pequeno TIJUPÁ – uma pequena e improvisada cobertura, dentro ou à beira do roçado (ou da roça).

A “mesa” era posta ao chão, guarnecido com palhas verdes de pindoba de jovens “pindobeiras”, de formação da futura/distante palmeira do babaçu. E, sobre a pindoba, outras palhas de revestimento e cobertura que poderiam ser: Pequenas e alargadas folhas de cantan (verdes) ou folhas de sororoca (semelhante às folhas de bananeira) ou simplesmente folhas de cauaçu, de um formato arredondado e pouco comuns em tais oportunidades.

Os trabalhadores/roceiros, para o almoço, reuniam-se e sentavam-se em volta da “mesa” e sobre pequenas e estreitas toras de madeira do roçado (do tipo: Tataíba, como chamavam). A grande porção da TIQUARA era posta (derramada/espalhada) sobre a folhagem, tendo à beira/centro da “mesa” um vasilhame (um cuité), contendo o peixe seco assado retirado do molho de água da cabaça, agasalhada à sombra, para descartar parte do sal incrustado. Desse mesmo peixe todos se serviam a um só tempo:  – Tanto os mais lentos quanto os mais acelerados.

De posse de uma colher metálica ou ainda que de uma improvisada “colher” de folha de pindoba, os trabalhadores, cansados da jornada e com fome, ao pino do meio dia (ou pouco mais), ao redor daquela “mesa” posta ao chão, esbaldavam-se entre a tiquara e o peixe seco ali posto à disposição do coletivo. Saciavam-se, empanturravam-se e depois serviam-se da água da cabaça, e descansavam um pouco., sentados ao chão, numa madorna apressada. Em seguida amolavam seus cutelos e... voltavam ao eito.

Era uma peleja e uma vida que hoje, os manuais jurídicos, obreiros ou sindicalistas, consideram como um trabalho escravo. Um almoço semelhante à senzala escravizada. Bem ou mal mas... era assim, a TIQUARA que compunha o almoço daquela massa trabalhadora, no sertão, no roçado. Do que de tudo fiz parte.

E O CHIBÉ? Já naquela época, jovens colegiais, no internato ou nas casas de pensão, nos pensionatos da capital, também improvisavam o CHIBÉ, uma mistura semelhante à TIQUARA: Água, farinha e açúcar, que era feito pelo próprio comensal, à casualidade de um lanche. Mais esportivo e mais casual e opcional era o CHIBÉ dos colegiais do asfalto – longe a centenas de milhas da Tiquara do tudo ou nada do roceiro daquele velho tempo, servida com um pedaço de peixe seco posto ao molho, na composição do almoço.

A TIQUARA era, portanto, o almoço do roceiro. Ou era TIQUARA ou não era nada. Ao final da jornada roceira, lá pelas cinco e meia da tarde, o sertanejo punha suas tralhas e ferramentas ao ombro (foice, patacho, sacho e facão) e, como sempre, um cofo (artefato do tipo vasilhame artesanal, encruzado  em palha). E já ao soturno da noite, caminhava distância rumo à sua casa, onde, se tivesse, servia-se de um jantar. E, se nada tivesse aquela sofrida TIQUARA do meio dia, seria a sua refeição do dia. Mas como tudo na vida é um tempo, esse foi aquele tempo. Hoje, os tempos estão mudados. No sertão tem bolsa família, auxílio/natalidade tem BPC/LOAS, tem aposentadoria rural (que vem do antigo FUNRURAL). Tem dinheiro contado, enquanto não evapora com o café e o açúcar e os remédios e correlatos. Os tempos mudaram. E a TIQUARA, hoje, é só uma lembrança que aquela gente prefere nem lembrar.
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*Viegas é o filho de Antônio de Inez (que estudava na cidade). Texto protegido por Lei de Copyright ©*(Lei nº 9.610/98). 
©Todos os direitos reservados ao autor.
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