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27/01/2024 às 00h00min - Atualizada em 27/01/2024 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Clarice Lispector – diálogos sobre o escrever

No livro Entrevistas, da contista, romancista e poeta Clarice Lispector, ela tem uma conversa aberta e sincera com várias personalidades do nosso mundo cultural, entre as quais Alceu Amoroso Lima, Bibi Ferreira, Elis Regina, Emerson Fittipaldi, Fernando Sabino, Ferreira Gullar, Jacques Klein, Jardel Filho, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Rubem Braga e muitos outros artistas da arte literária e de diversificados ramos do entretenimento, como Zagallo, recentemente falecido, e o maestro da bossa nova, que nos deixou tantas canções: Tom Jobim.

Fixei-me, para nossa conversa de hoje, em duas entrevistas: a de Lygia Fagundes Telles e de Rubem Braga, ícones da arte de escrever. Lygia Telles, uma escritora premiada como romancista e contista. E Rubem Braga, considerado o maior cronista brasileiro, ao reinventar esse gênero literário, que teve em Machado de Assis o seu grande precursor.

Antes de entramos no tema da nossa breve conversa, ao recorrer a três grandes nomes da arte brasileira, e uma vez que vamos falar sobre literatura, não como abordagem teórica, faço referência a uma citação introdutória no livro A vergonha, da Prêmio Nobel, de 2022, Annie Ernaux, cuja frase é de autoria de Paul Auster, autor de A invenção da solidão, que diz o seguinte: “A linguagem não é a verdade. Ela é a nossa forma de existir no universo.” Concordo com o autor da frase. Para quem escreve, por existir ou para existir, a linguagem é o começo e o fim. A existência pressupõe o uso da linguagem, ao traduzir os momentos de nossa existência. Sem ela, somos meros mortos-vivos.

Ao iniciar a entrevista com Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector começa fazendo algumas ponderações a respeito dessa premiada escritora: “Conheço a Lygia desde o começo de sempre. (...) O jeito dela escrever é genuíno pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza.” Em seguida, pergunta-lhe: “– Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?” Lygia responde: “Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente.” Clarice, para complementar, acrescenta: “– Para mim a arte é uma busca, você concorda?” E Lygia responde: “– Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes.” Até porque, ressalto, a linguagem, que é fundamento da existência literária, morre com a acomodação do artista.

E o leitor brasileiro, na concepção nada otimista de Lygia Fagundes Telles, consta esta breve, mas chocante observação: “E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. ‘As pessoas são muito volúveis’, concluiu padre Luís.”

Na entrevista com o cronista Rubem Braga, conhecido como uma pessoa circunspecta, fechada, Clarice assim se refere a ele: “...há qualquer coisa de rural em Rubem Braga. Aliás, ele se sente, no Brasil de hoje, como uma velha vaca atolada num brejo. (...), ele é pessoa que perdoa muito e entende tudo e não se faz juiz de ninguém. Ele é corajoso. Simples. Delicado. Ele tem qualquer coisa de rural em si.” E pergunta-lhe: “– Você para mim é um poeta que teve pudor de escrever versos, e então inventou a crônica (pois foi você quem inventou esse gênero de literatura), crônica que é poesia em prosa, em você. É ou não é?” O velho Braga responde: “Em suma: eu escrevia o que me dava na telha e, na verdade, nunca tive pudor de fazer versos. É que fazer bons poemas (em versos) exige um tipo de habilidade e de economia, síntese e ao mesmo tempo, desculpem a palavra, inspiração. É muito mais fácil ir na cadência da prosa, e quando acontece ela dizer alguma coisa poética, tanto melhor.” Nessa entrevista, tem-se a certeza absoluta que Rubem Braga não foi apenas um cronista, mas um poeta que fez da crônica a arte de fazer poesia. Por isso, as suas crônicas continuam eternas, porque a arte não morre. A linguagem poética é a nossa própria existência.
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* Membro da AML e AIL
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