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20/01/2024 às 00h00min - Atualizada em 20/01/2024 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

NHOZINHO, NHOZINHO, MORREU!

O texto, ou como queiram, a crônica que recebeu o título acima, está incluído num projeto de livrinho que venho escrevendo há algum tempo. Mas se encontra aos pedaços. Aos poucos, vou publicando, sem saber se as pessoas irão ler. Procuro neles traduzir algum sentimento do amor fraterno e cristão, que um dia, bem lá um pouquinho atrás, as pessoas se humanizavam vivendo esses dramas. Tanto que as peças sobre a Paixão de Cristo, encenadas, na Semana Santa, em nossos teatros improvisados, na Igreja de São Roque, no Lira, São Pantaleão, na rua São Pantaleão, e nos Maristas, tinham um público tão grande que exigia sucessivas reapresentações. Meu pai, o marceneiro Florêncio, conhecido por Fulozinho, era um dos fiéis participantes, ora como ator coadjuvante, ora, acima de tudo, na árdua função de construtor do palco e do cenário.

Soma-se a essas reminiscências a leitura que estou a fazer de um grande livrinho, só porque edição de bolso, cujo o autor é V. Trepelkov, para mim um desconhecido, cujo título da obra me chamou a atenção: A Crise Geral do Capitalismo, publicado pelas Edições Progresso e sendo o Título 4, da Biblioteca de Conhecimentos Políticos, em que o discorre sobre as causas que têm levado à crise do capitalismo. Fato esse, nos dias de hoje, constatado na política externa destruidora do governo Biden, que, conforme adverte Jeffrey Sachs, proofessor da Columbia University (NYC), Diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável e Presidente da Rede de Soluções Sustentáveis da ONU, “a política externa americana está sem rumo, com um presidente cuja única receita para a política externa é a guerra. (...) O complexo militar-industrial ameaça nossa liberdade, nossa democracia e até nossa sobrevivência.”

Ainda como provocação sentimental, li a crônica Na Escuridão Miserável, de Fernando Sabino, recheada de um lirismo arrebatador, a retratar a crueldade capitalista, na criminosa exploração da massa trabalhadora, reeditada agora na Argentina, com a máscara cruel do liberalismo, ou, se quiseram, do neoliberalismo. Deixemos, pois, a usura capitalista e vamos, se interessar, a croniquinha Nhozinho, Nhozinho, Morreu!:

Nhozinho, nome muito comum, pelo seu emprego carinhoso, familiar. Diminutivo a expressar um sentimento de amor maternal e de convivência entre os irmãos. Assim o chamavam. Bom companheiro nas constantes pelejas do bate-bola. As disputadas peladas da Vila Macaúba. Sua mãe, uma lavadeira. O dia inteiro agachada, no quintal da casa, a lavar, com água e sabão Andiroba, aquele amontoado de roupas. Vida dura. Duríssima. De uma crueldade necessária pela sobrevivência. Todos da rua sabiam desse cotidiano. O trabalho mal dava para educar os filhos e comer. Mas esta era a vida. O marido, um homem apegado aos delírios alcoólicos. Ele branco, ela preta. Ela, como se estivesse na senzala, batendo roupas na tábua de lavar; e ele, sempre embriagado. No seu delírio, chamava o filho mais novo. Benjamin! Submetido às constantes surras. Sofridas surras, que eram dadas pela mãe, já cansada de ser consumida pelo trabalho exaustivo e pelo sofrimento diário.

Dos irmãos, Nhozinho era diferente. Relacionava-se bem com os amigos daquela alegre e solidária rua. Jogava boa bola. Era querido pelos companheiros das peladas do cair da tarde e dos sábados e domingos. Tinha lugar cativo nos times que se formavam nas disputas do jogo de bola dividido.

Nhozinho! Assim todos o chamavam com uma pitada de carinho.

A escola preparatória das lições do Grupo Escolar ficava em frente à casa de D. Maria. A professora, Ivonete, filha de seu Vitório, o sapateiro da rua, sempre disposto a renovar as solas dos usados e gastos sapatos. Mas, cedo, os alunos se agrupam em torno de uma grande mesa. Alguém levanta a voz e, numa súplica sofrida, alerta-nos: “Nhozinho, Nhozinho, morreu!” Repete-se a frase ante o espanto de todos. Olha-se para casa de D. Maria, a lavadeira, tem-se a consciência do velório. Nhozinho estava morto. Seu corpo estendido num caixão, nas tradicionais cores que denunciam o sofrimento de quem fica: branca e azul. Fora vitimado de uma morte inexplicada. A questão se levantava nos murmúrios daquela inesperada partida: de que morrera? Não havia resposta. Ficava no ar a indagação. Nhozinho, o menino querido de todos, morrera. Uma pena. E o pior: uma morte sem explicação. Apenas morrera.

No meio da dúvida, veio-se a se saber que, num dos jogos de bola, recebera uma bolada no estômago, tendo caído ao chão com dificuldade de respirar. Mas a morte, afirmam com inteira convicção os sábios esquinas, quer uma justificativa. O fato é que Nhozinho, o companheiro do jogo e das conversas jogadas fora, não mais estava entre os que o tratavam com carinho. E a certeza da morte se, por um lado, humaniza os que ficam, traz a mensagem fatalista de que a vida é uma cruel experiência passageira, que se está a caminhar para o seu encontro, embora dela não se queira sequer o contato. A vida de Nhozinho, educado por aquela lavadeira, mãe devotada aos filhos, foi uma experiência fugaz. “Nozinho, Nhozinho, morreu!” Ficou essa verdade, revelada pelo corpo adormecido no caixão exposto naquela sala aberta, sob o olhar inquisidor e desconfiado de quem passava pela rua.

Essa rua, que declinava para baixo como se fosse nos levar para o infinito de todos os nossos sonhos, vez por outra, surpreendia-nos com a essas fatalidades. A vida se encontrava com a morte. Sem muita insistência, embora nos lembre Machado de Assis, que entre essas duas figuras – vida e morte - que ainda não fizeram um acordo de convivência, há apenas uma curta ponte, com o mesmo trajeto e o mesmo encontro e desencontro.

Nhozinho partiu. Ficou a lembrança. Dele e daquele momento de vida e da rua. O tempo é eterno, dentro de cada um de nós; não passa. O que se tem por passado é apenas a efemeridade do presente. Não se vive o presente, sem a presença do passado. Sempre a nos lembrar que ele existe. É eternamente eterno.
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* Membro da AML e AIL
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