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06/01/2024 às 00h00min - Atualizada em 06/01/2024 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

A Mulher Desejada, na canção e no poema 

Essa ideia de falar um pouco sobre a mulher, no sentido da mulher desejada, tanto na canção como no poema, me veio pela leitura que fiz de uma notícia a respeito de um cidadão, portanto de um ser humano, que, estando fruindo as alegrias de um cruzeiro, resolveu, num ato de coragem ou de desequilíbrio mental, atirar-se ao mar e desaparecer, já que, até o momento, em plena vigência festiva de 2024, o esperado ano novo, cantado em versos e prosa, não foi encontrado. Quem sabe, (apenas uma idílica suposição) deve ter-se encantado com alguma bela e amorosa sereia, perdida nas inquietas águas do oceano, por onde trafegava o navio patrocinado pelo quase ex-jogador de futebol Neymar.

A notícia, em resumo, dizia que “A mulher de 27 anos que acompanhava o homem de 32 anos que caiu do navio “MSC Preziosa”, a cerca de 40 km da costa de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, afirma que, horas antes do incidente, ele teria enviado mensagens a um amigo dizendo que pensava em matá-la. ‘Enquanto eu estava no banheiro, o Carlos pegou meu celular. Eu nem sabia que ele tinha a senha. Ele viu conversas minhas com outros homens e mandou print para amigos dizendo que estava pensando em me matar. Ele pretendia me matar’, afirma Vitória Bárbara Momenso ao portal Metrópoles. O envio das mensagens foi confirmado por pessoas próximas a Carlos.” Perguntei-me, evidentemente a mim mesmo, por que Carlos, ao lado da sua amada Vitória, sem que nem pra quê, resolveu homiziar-se e desaparecer em tormentosas águas oceânicas? Mas a Vitória, a sereia do navio, não nega que tinha conversas com outros homens, fato tão comum nos nossos dias, que, para prevenir constrangimento e violência contra a mulher, foi instituída a Lei n. 14.786, de 28/12/2023, que cria o protocolo “Não é Não”. Portanto, se a mulher disser “não”, com ou sem disposição veemente de não aceitar, comporte-se, ou suma de uma vez por todas. Sinal de que o mar não está pra peixe.

Sobre isso e no ensejo, como diziam, antes de 2024, os antigos, atentemos. As primeiras disposições dessa lei deixam bem claras a sua finalidade. Sem sermos juristas, pois não estamos aqui para jurar nem a favor nem contra, leia-se o que está escrito: “Art. 1º Esta Lei cria o protocolo “Não é Não”, para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima, bem como institui o selo “Não é Não – Mulheres Seguras”. Art. 2º O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas. Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.”

Dito o “não” pela mulher paquerada, acabou. A insistência vai caracterizar crime de constrangimento. Mas, no caso do navio, relatado no início desta conversa, Vitória, a companheira de Carlos, pela dedução natural que se faz, estava por livre vontade no cruzeiro. Se ela conversa com outros homens, isso, nos tempos atuais, bem diferentes dos da Amélia de Ataulfo e Mário Lago, é de nenhuma relevância. O fato ocorreu no dia 30 de dezembro do falecido ano de 2023, e a Lei do “Não é Não” é de 28 de dezembro, também do ano de 2023, com vigência no dia 29 do mesmo mês e ano. Embora vigente a nova norma de proteção e criminalizadora, Carlos e Vitória, se bem que supostamente a conhecessem, estavam em alto-mar, no exercício pleno de sua vontade. Só o amor ou o desamor explicam o gesto de fuga de Carlos, ao precipitar-se para volumosas águas por onde o navio fazia o seu percurso para alegria dos que participavam do evento e aguardavam a chegada apoteótica do ano de 2024.

Apenas uma lembrancinha maléfica, para os desavisados fariseus, que, descumprindo a regra “Não é Não”, resolvam adotar o gesto de Carlos: o parágrafo único da citada Lei exclui sua aplicação em cultos e “a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa”. Essa regra de isenção demonstra a força das bancadas, na Câmara e no Senado”, de parlamentares que integram e são eleitos com votos de cabresto, instituições religiosas. Se esse dispositivo é constitucional ou inconstitucional, só o Supremo Tribunal Federal, provocado por quem tenha legitimidade, poderá se pronunciar a respeito.

Porém uma verdade se sobrepõe: por que o protocolo “Não é Não” só pode ser aplicado nos ambientes referidos no art. 2º da Lei? A resposta talvez esclareça que todos, independente de qualquer credo religioso, são iguais perante a lei. É o que declara o art. 5º da Constituição Federal, ainda em plena vigência. Mas… Aguardemos a aplicação desse festejado protocolo de proteção das vítimas de constrangimento, sobretudo quando ocorrer em cultos ou em quaisquer atos religiosos.

Nos tempos que já se foram e se escoaram, mas não em águas turvas do oceano, como as que acolheram Carlos, companheiro efêmero de Vitória, as mulheres, por serem mulheres, tinham um tratamento ora lírico, ora amoroso, ora depreciativo. As canções traziam essas manifestações. Em A mulher que passa, Vinícius de Moraes seria um poeta com sentimentos constrangedores, quando canta sua musa passageira: “Meu Deus, eu quero a mulher que passa. / Seu dorso frio é um campo de lírios / Tem sete cores nos seus cabelos / Sete esperanças na boca fresca! / Oh! como és linda, mulher que passas /Que me sacias e suplicias /Dentro das noites, dentro dos dias!” E, no Soneto de Fidelidade, o poeta canta o amor eterno, porquanto infinito enquanto dure: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.” No confronto dialético desses sentimentos, prevalece a infinitude do sentir, visto que, não sendo imortal, seja infinito enquanto dure.

Na canção popular, os poetas, como Ary Barroso e Luiz Peixoto, cantaram a mulher com um lirismo arrebatador: “Maria / O teu nome principia / Na palma da minha mão / E cabe bem direitinho / Dentro do meu coração.” Dorival Caymmi cantou Doralice, Marina, e Ataulfo Alves e Mário Lago falaram de Amélia, a mulher submissa, de cama e mesa, que “passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer”. Haroldo Lobo e Wilson Batista seguiram essa trajetória de Ataulfo e Mário Lago, cantaram a mulher dona de casa, a Emília, “que saiba lavar e cozinhar / Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar (…) ” Essa é a mulher oprimida, amarrada pela carência dos afazeres, que se vestiu dos avanços do tempo e deu espaço para a mulher amada. Vinícius, esse poeta que fez do amor matéria-prima do sem canto poético, em Eu sei que vou te amar, eleva a mulher ao trono divino do amor eterno, ainda que infinito enquanto dure e extravasa essa confissão: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar / Em cada despedida, eu vou te amar / Desesperadamente / Eu sei que vou te amar .” Essa nova mulher desejada das gentes, na canção e no poema, assume o pedestal definitivo da mulher amada.

* Membro da AML e AIL
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