MENU

30/12/2023 às 00h00min - Atualizada em 30/12/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

As flores amarelas e o canto dos bem-te-vis 

Ainda cedo. Mas, em que pese Netanyhau ter-se convertido no novo Herodes, ao assassinar centenas e centenas de crianças palestinas em Gaza, utilizando o poder destrutivo da força militar do Estado de Israel, ergui-me preguiçosamente do leito, logo no início da manhã, preocupado – muito preocupado com o advento do ano de 2024. Os raios solares tímidos tentavam romper as grossas nuvens da manhã carolinense. Livrei-me do cadeado, abri o portão e olhei para o tempo. Estava convidativo, a desafiar para caminhada matinal. A preguiça do amanhecer me retinha. Não era assim. Nem sempre fora assim. No meu tempo da labuta diária, amanhecia o dia pronto para luta do pão nosso de todos os dias. A batalha seria árdua. Ainda é. Mas a preguiça, esse pecado que teima em me atazanar, nesses dias de intenso calor, pouco se me dava da sua cativante presença. Indiferente a sua modorra, expulsa-a do meu caminho. Os livros precisam ser retirados do sossego da estante e lidos com muita atenção, a serem feitas as rotineiras anotações em cada página para emergenciais consultas. A massa cefálica bem ativa, efervescente, como o sal de fruta Eno borbulhante, que se dissolvia em meio copo dágua, para erradicar a ressaca do dia anterior, resultado de grande azáfama de uma boêmia liberticida.

Fui à luta. Não poderia retroceder diante de um desafio solar, no clarear de um dia que parecia alegre e convidativo para o rejuvenescimento das juntas empedernidas pela escravidão do trabalho virtual. Tudo isso fez-me lembrar de uma advertência do poeta Bandeira Tribuzi, com o qual convivi durante certo e exíguo tempo, recebendo as suas lições de literatura brasileira e portuguesa, e sociologia. Bandeira advertia, da lucidez de sua Inteligência, que o homem, do futuro, não se sabia se próximo ou remoto, não teria mais necessidade dos braços e das pernas, que atrofiariam. Ficaria com cabeça igual à dos marcianos (desenhado brejeiramente numa época em que não se havia chegado à lua), imensa e arredondada, com o corpo desengonçado. Só o cérebro seria fundamental para a vida humana. E tinha razão o poeta. Estamos bem adiantados nessa caminhada. O mundo do celular é uma agressiva realidade. Viver sem celular, sem zap, app, ou coisa parecida, é uma catástrofe para os seres viventes deste mundo. O e-mail é a vida e a morte de muita gente. Quem não se liga no zap, está desligado do mundo, quando não cancelado, a nova modalidade de morte-vida.

Com todos esses avanços cibernéticos, saí do meu casulo da Idade da Pedra, atravessei milênios, e fui expor-me ao astro-rei. Confesso: fui absorvido por uma quentura da torridez de um sol, que se deixava sucumbir por um vento brando e apaziguador. Quase volto a atender ao incessante chamado daquela enjoada preguiça. Resisti. Enfim, tenho essa mania da resistência. Tanto que tive a coragem de resistir à ditadura de 64. Enfrentar e viver as delícias das coisas boas faz com que se siga em frente, driblando os obstáculos da má vontade, solapando o desânimo.

 Caminhei caminhadas longas. Embora relutante, saí para trilhar caminhos tão rústicos quanto bucólicos. Vieram-me os versos de louvação de Bandeira Tribuzi: “Quero ler nas ruas / fontes cantarias / torres e mirantes / igrejas, sobrados / nas lentas ladeiras / que sobem angústias / sonhos do futuro / glórias do passado.” Nesse canto poético, esticando as pernas, um pouco trôpegas, e levantando os braços, ainda firmes no balançar frêmito do ir e vir, balbuciava em baixo tom essa visão onírica de Tribuzi, quando, sob a inspiração divina, fez a louvação de amor universal. Transpus todo esse sentimento do poeta para Carolina, onde me encontro num exílio afetivo, vivendo a ternura da fraternidade e da religiosidade de uma gente, que ama a felicidade de ser feliz.

Nessa rota, caminhei pelos sonhos. Sonhos que ainda sonho.  E, no trajeto dessa caminhada, percebi que estava numa espécie de éden, serpenteado de flores amarelas. Um belo poema da natureza. As flores são os versos deste poema, que nasce do vigor criativo da terra. O amarelo que se sobressaía de cada pétala, transluzia a essência de todo o caminho. Andar era encontrar-se com o Criador representado por todas as flores espalhadas em cada lado do caminho. A minha curiosidade me permitiu perceber que havia flores que se alçavam a uma altura mais privilegiada. Ficavam no topo, numa altitude de supremacia, para receber o calor mais ardente do sol. Não sei o nome dessas belas e amarelas flores. Tentei ainda perguntar para um caminhante. Ele apenas disse, num desejo Inconfessado de livrar-se da pergunta: são apenas flores. Não concordei com o apenas. Não. Não era. Todas flores de um amarelo claro, cintilante, vivo, como se fosse um belo verso de Bandeira, ou de Drummond, esse itabirense que viu uma pedra no meio do caminho e cantou o seu canto poético:

 
“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.”

Para Drummond, a pedra no meio do caminho; para mim, belíssimas e sedutoras flores amarelas. Não tenho inveja desse mineiro de Itabira. Mas tenho uma vontade doida de dizer que no meio do caminho tinham flores poeticamente amarelas. Mais a vontade de fazer delas um poema, para ficar eternamente gravado na alma de quem ama as flores amarelas. Embora não tivesse feito um poema, ainda que poeticamente infantil, sobre as flores amarelas que ornaram o meu caminhar, todo esse sentimento me levou a uma crônica de Cecília Meireles, História de bem-te-vi, em que a poeta cearense se encanta com o canto do bem-te-vi. No meio da floresta de arranha-céus, ela ouviu o canto do bem-te-vi, que insistia em cantar a sua alegria ou tristeza apenas repetindo as duas últimas sílabas: ...vi!...vi!...vi! Numa passagem da crônica, Cecília Meireles extravasa todo o seu sentimento: “Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar. E cantava assim: ‘Bem-bem-bem… te vi!’ Pensei: ‘É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!…’ Depois o passarinho mudou. E fez: ‘Bem-te-te-te… vi!’ Tornei a refletir: ‘Deve estar estudando a sua cartilha… Estará soletrando…’ E o passarinho: ‘Bem-bem-bem… te-te-te… vi-vi-vi!.” Aguardemos com ansiedade o 2024, ornando, se possível, os nossos caminhos com flores e com a música suave do canto do bem-te-vi.

• Membro da AML e AIL
Link
Leia Também »
Comentários »