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23/12/2023 às 00h00min - Atualizada em 23/12/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Neste Natal, desejo a todos a paz de criança dormindo 

Embora esse seja meu desejo: a paz de criança dormindo, a ideia poética dessa paz não me pertence. Apropriei-me de um dos versos da poeta da música popular brasileira Dolores Duran, retirando-o da sua eterna canção A Noite do Meu Bem, quando, no seu canto de amor, Dolores faz a súplica poética, desafio de quem ama, na sublime ânsia, tal qual nestes dias de festas, de enfeitar a noite do bem-amado. Nesse canto poético, em que o sonho se encontra com a vida, é Dolores Duran que invade o recôndito de nossos mais profundos sentimentos de amor: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / E a primeira estrela que vier / Para enfeitar a noite do meu bem.” Na estrofe seguinte apela para o sentimento de paz, com esta encantadora e transcendente verdade: “Hoje eu quero a paz de criança dormindo / E o abandono de flores se abrindo / Para enfeitar a noite do meu bem.” E tem mais: “Quero a alegria de um barco voltando / Quero ternura de mãos se encontrando / Para enfeitar a noite do meu bem.” Depois de ler e ouvir, na voz dessa poeta e cancioneira de nossos sonhos, Dolores Duran, só me restou esse caminho sem volta, de desejar a todos o amor como sentimento do mundo, ainda que agredido pelo ódio e pela violência, e a paz de criança dormindo. Como também cantou Piaf, em La Vie en Rose, deve-se ver a vida em cor-de-rosa, ao som cativante das palavras de amor e de vida.

A propósito, estava a ler a crônica do confrade, poeta e romancista José Sarney, Vida e Morte, publicada na edição deste jornal de 16 a 17 de dezembro, que discorria sobre a crueldade do assassinato do militante petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, por bolsonarista. Num dos enfáticos parágrafos do texto, consta esta advertência: “O ódio e a violência não têm lugar no Estado de Direito. Não têm lugar na política. Não devemos nem podemos seguir Lênin – ‘quem não está conosco está contra nós’ – ou Clausewitz – ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’ – e ‘a destruição do inimigo deve ser sempre o objetivo’. Essas palavras e ideias são inaceitáveis numa democracia. São um atentado ao Estado de Direito.” O caminho a seguir é o da paz. A paz de criança dormindo, ou, sempre que possível, a paz do sorriso de uma criança. Para enfeitar não apenas a noite do meu bem, mas todas as noites, humanizando-as, como, ainda lembro com sentimento de um passado de paz, o meu avô, que era um carroceiro, a embalar-me na rede e contar histórias para que aquele criança encontrasse a paz de criança dormindo.

Por todos esses sentimentos do mundo, parodiando o eterno poeta Drummond, não consigo esquecer dessa paz, motivo maior por que desejo que todos a tenham. Por essa mesma razão, nunca me saiu do pensamento, como se fosse uma salutar obsessão, o Poema de Sete Faces, que inicia o livro Alguma Poesia, o primeiro editado por Carlos Drummond de Andrade, que, já na primeira estrofe, o poeta de Itabira diz “quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.” No andar do poema, o poeta vai vendo e falando sobre o mundo, um mundo de paz: “O bonde passa cheio de pernas: / pernas brancas pretas amarelas. / Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. / Porém meus olhos / não perguntam nada.” E, como se fizesse a premonição dos nossos conturbados dias, o poeta se refere ao Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é o meu coração.” Com o poeta de Itabira, Raimundo ou José, somos apenas uma rima. Não há solução. Só nos resta o amor: a paz de criança dormindo. Para compreender e viver as peripécias e exigências deste mundo mundo vasto mundo impõe-se ir adiante e ser gauche na vida. De outro modo, só resta a conclusão do poeta: “Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo.” Tenho sonhado e pensado. O melhor a se fazer é ser gauche na vida. Nascemos com esse destino: ser gauche na vida. Mesmo em sonho, ver o bonde que passa; todas as pernas brancas, pretas ou mulatas. Ver a vida, as estrelas e a lua e sentir o calor do sol.

Ser gauche na vida. Insisto. Quando nasci, ouvi uma voz no ventre da minha mãe, que também me disse: - Vai, Manoel Aureliano! ser gauche na vida. Como todos fazem, enfrentei o mundo ainda não tão vasto mundo, fiz mil piruetas para cumprir essa árdua missão de vida. De aprendiz de sapateiro até juiz de direito. Foi uma árdua e longa caminhada sendo gauche na vida. Várias natais, nem sempre natais, mas respeitosamente Natais. Com direito à queimação de palhinha e saborear bolo de tapioca com chocolate bem quentinho, servido num bule que ficava no meio da mesa. Tudo isso bem gauche, pois a vida é assim, porém com a paz de criança dormindo, e embalado com as histórias do meu avô. Desejo a todos, que têm fé no amor, essa Paz. Um Natal feliz!

* Membro da AML e AIL
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