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09/12/2023 às 00h00min - Atualizada em 09/12/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Santa Ignorância

Santa ignorância era uma expressão popular usada, há algum tempo atrás, para amenizar a falta de conhecimento do outro. Muito comum no jargão familiar, ou mesmo nos ambientes sociais em que prevalecia o respeito mútuo, razão pela qual se recorria ao adjetivo “santa” para humanizar o sentido agressivo da palavra ignorância. Ao invés de dizer-se ignorante, dizia-se, num sentido eufêmico, “santa ignorância”. Nos tempos atuais, a ignorância se alastrou pelo mundo, como vírus resistente à vacina do conhecimento. O que há de ignorantes, assumindo o porte intelectual de fancaria, com uma cambada de seguidores idiotas, é de assombrar a própria ignorância. Mas, deixa pra lá. Não é bem isso. Queria deixar pra lá, mas vou tratar um pouco dessa questão, de domínio da filosofia popular e erudita.

Por acaso, numa rápida viagem a São Paulo, para passar alguns dias com a minha filha, fui, como virou rotina, a uma livraria e adquiri o livro Ignorância – uma história global, de Peter Burke. Uma obra interessante e atualíssima, já que o mundo ocidental ou não está repleto da praga da ignorância. Diz a orelha do livro que Peter Burke é professor emérito de História Cultural da Universidade de Cambridge, sendo autor de dezenas de livros, que foram traduzidos para mais de trinta línguas. A apresentação teve o vigor da inteligência do prof. Renato Janine Ribeiro, que é titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, que, de início, afirma: “Seria fácil imaginar de que trata este livro – mas seria, também, equivocado. Uma história e sociologia da ignorância arrogante que tomou conta de nosso tempo.” Logo adiante alguns trechos da apresentação do prof. Renato Janine: “Os últimos anos mostraram uma expansão da ignorância antes, talvez, inédita. Assistimos à difusão do que é errado ou falso em escala global. O negacionismo em relação à covid e seu vírus foi o ponto alto de um processo que começou pela recusa da ética pública que a humanidade estava gerando, após o trauma da Segunda Grande Guerra Mundial e a boa nova da queda das ditaduras comunistas no Leste Europeu e das ditaduras pós-americanas da América Latina.”

Com essa lógica irracional, para o ignorante a verdade, a sua verdade, é absoluta, mesmo contrariando teses filosóficas de que a verdade é sempre provisória. Sócrates afirmava com inteira convicção: só sei que nada sei. Ou seja: o conhecimento não é pleno, pois está sempre em processo de mudança, com novas pesquisas da realidade vivida. Yuval Harari, ao retomar a ideia de Sócrates, diz que nunca a humanidade soube tanto, e isso justamente porque (e não apesar de) nunca teve tanta consciência do que não sabe. Ainda assim, há uma ignorância ativa. Só sabemos que nada sabemos, porém não se busca o saber.

Peter Burke, no Prefácio e agradecimentos, inicia com estas palavras: “A ignorância, definida como ausência de conhecimento, pode não soar nem um pouco como um tópico a ser discutido – um amigo, inclusive, imaginou que um livro sobre o assunto não conteria nada além de páginas em branco. No entanto, o assunto vem despertando um interesse crescente, estimulado pelos espetaculares exemplos de ignorância dos presidentes Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, para não falar de outros governos.”

Pelo voto, esses citados presidentes ignorantes do seu papel na história e do que poderiam implementar para otimizar os padrões de vida sociais, são apoiados por eleitores ignorantes, que, no dizer do prof. Renato Janine, “não apenas se reduziu a quantidade de países e de pessoas praticando a democracia, como ocorreram muitos casos em que, pelo próprio voto, pela própria liberdade de expressão e organização, se escolhe o cativeiro. (...) Vivenciamos episódios, por todo o globo, de servidão voluntária, para empregar a feliz escolha de La Boétie para algo profundamente infeliz, que é a busca, por meio da liberdade, da submissão”. Ou, acrescento: da catástrofe final da guerra nuclear. Ou da supremacia destrutiva do poder econômico em detrimento dos trabalhadores.

O livro de Peter Burke é cativante. Alerta-nos para o momento do reinado autoritário da ignorância. E ele acentua que, no passado, uma das principais razões para a ignorância era o fato de que muito pouca informação circulava na sociedade. O conhecimento difundido era precário, registrado em manuscritos, ou armazenados em mosteiros. Nos dias atuais, há uma overdose de informação. Vive-se um paradoxo: a era da informação tanto difunde a ignorância quanto difunde o conhecimento. Como não há um filtro racional, prevalece o não-conhecimento, aquilo que cada um quer que seja a sua verdade. E a ignorância, como sustenta Peter Burke, “é, às vezes, o resultado de uma perda de conhecimento, uma espécie de amnésia coletiva”.

Neste momento histórico, vive-se o tormento da ignorância da mudança climática. O capitalista, do alto do seu dinheiro, por ignorância ativa, releva o debate para o campo da insignificância. E cientistas, a partir de 1896, já previam o aquecimento global, com conseqüências fatais. O livro Primavera Silenciosa (1962), da bióloga norte-americana Rachel Carson, já se referia cientificamente a esse respeito. Por pura ignorância, estamos no limiar da destruição do mundo. Se a bomba atômica de Hiroshima ceifou, em minutos, milhares de vidas, quais as conseqüências do uso de bomba nuclear? O conhecimento científico tem a resposta. A ignorância, não.

* Membro da AML e AIL
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