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02/12/2023 às 00h00min - Atualizada em 02/12/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Senado Aprova PEC Inconstitucional contra o STF

Lamento o silêncio, como diria o dramaturgo Nelson Rodrigues, silêncio sepulcral das instituições jurídicas brasileiras, ante a grave e aberrante aprovação dessa emenda à Constituição Federal – a PEC nº 08/2021 -, que restringe drasticamente os poderes jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal. Basta que se leiam os fundamentos da proposta para deduzir-se, sem pairar qualquer dúvida, que são oportunistas e falaciosos, com a finalidade de contrapor-se à atuação republicana, em defesa da Constituição e, portanto, na preservação do Estado de direito e da democracia, a constituir essa magna função uma das garantias institucionais da nossa Suprema Corte de Justiça, como a elaboração de seu próprio Regimento Interno, consoante consta no inciso I, letra “a”, do art. 96 da Carta Magna, até porque, em face desta regra, tem-se o exercício fundamental pelo STF da capacidade normativa interna, que não pode ser afetada por emenda constitucional, para atender a interesses subalternos de grupos políticos, em detrimento do pleno exercício de um dos poderes da República.

Fiz uma pesquisa para chegar a essa drástica conclusão. E, de logo, aviso: não precisa ser constitucionalista para entender-se que o teor da PEC 08/2021, aprovada no Senado da República, em dois turnos e, pasmem, em exíguo tempo de deliberação, com voto favorável do senador Jaques Wagner, do PT, é o começo fatídico de logo, eliminar-se a clássica divisão dos três poderes – harmônicos e independentes -, com a supremacia apenas do Executivo e a figuração fantasiosa do Legislativo.

Afirmam alguns apoiadores dessa aberração, denominada de PEC, que se trata de um aprimoramento institucional e que, portanto, não padece de qualquer inconstitucionalidade. Penso diferente. Até porque pensar nos ajuda a ver o mundo de um modo nem tanto otimista ou pessimista. A vida tem-me ensinado a tomar alguns necessários cuidados, sobretudo quando, na ribalta desses acontecimentos, aparecem algumas figuras como é o caso de Oriovisto Guimarães, senador de nome esquisito, que só agora tomei conhecimento de sua preciosa existência. Além de Magno Malta, personagem conhecidíssimo das tramas suportadas pelo Estado brasileiro, Arthur Lima, o presidente que comanda o espírito conservador nefasto dessa nossa sofrida República, Esperidião Amin, velho conhecido de outros tempos da Arena, que deu sustentação à ditadura civil-militar, e Rodrigo Pacheco, que teve o desnecessário cuidado de justificar a proposta como não tendo caráter retaliativo. Como diria o outro menos avisado, pode ser. Na minha perplexidade, só vendo para crer.

Transcrevo a ementa da PEC. Mas antes, a título de esclarecimento, quero dizer que essa emenda à Constituição, visando especificamente, restringir o pleno exercício dos poderes constitucionais do STF, teve tramitação inicial no Senado da República, com o seguinte registro: Assunto: Organização do Estado  - Organização Federativa.  Ou seja: sua finalidade atinge o sistema federativo e, de forma mais evidente, a separação dos poderes, instituições sagradas, protegidas pela própria Constituição Federal, não podendo ser objeto de emenda constitucional do poder constituinte derivado, mas tão só decorrente de uma assembleia nacional constituinte, o que implicaria a consulta plebiscitária ao povo, para saber se pretende ter uma nova Constituição. Ou pode ainda decorrer de um processo revolucionário, objetivando reformas não apenas formais, mas de conteúdo material.

Passo à transcrição da emenda e da sua explicação: Ementa: “Altera a Constituição Federal para dispor sobre os pedidos de vista, declaração de inconstitucionalidade e concessão de medidas cautelares nos tribunais.” Explicação da ementa: “Estabelece prazos para os pedidos de vista nos julgamentos colegiados do Poder Judiciário. Determina que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial os tribunais possam deferir medidas cautelares que: suspendam a eficácia de leis e atos normativos com efeitos erga omnes; suspendam atos dos presidentes dos demais poderes; suspendam a tramitação de proposições legislativas; afetem políticas públicas ou criem despesas para os demais poderes. Fixa prazo para o julgamento de mérito após o deferimento de pedidos cautelares em ações de controle concentrado de constitucionalidade e dá outras providências.”

Toda essa matéria, objeto dessa absurda e mostrenga Emenda, aprovada na CCJ a toque de caixa, ou seja, sem grandes discussões, recebeu a seguinte destaque de chamada de página do jornal Correio Braziliense: “CCJ aprova PEC que limita decisões monocráticas do STF em menos de 1 minuto (Correio Braziliense, 04/10).” E o silêncio das nossas instituições jurídicas continuam a ensurdecer a minha inquieta consciência. Num Estado de direito, portanto democrático, não é possível alterar-se, de modo autoritário e majoritariamente, por força do domínio pernicioso de grupos políticos, ideológicos e econômicos, e ainda o fundamentalismo religioso, normas constitucionais, com tendências claras de um nefasto aviso a um poder constituído, como é o STF, de que se deve comportar direitinho, sob pena de ser marginalizado do sistema de separação dos poderes. A Constituição, numa hermenêutica normativa específica e sistêmica, veda essa conduta, que se assemelha ao exercício abusivo do que se tem chamado de legistocracia.

A PEC 08/2021, açodadamente aprovada, por força do poder majoritária desses grupos conservadores dominantes no Senado, fere normas pétreas da Constituição Federal. Primeiramente, deve ser dito que os pontos que pretendeu normatizar, no afã de coibir a atuação do Supremo Tribunal Federal, são de natureza procedimental e processual, cuja competência de legislar ou é do próprio STF ou dos tribunais. Vejamos: a PEC acrescenta o inciso XVI ao art. 93 da Constituição Federal, tratando equivocadamente de norma de procedimento e de processo, preceitos inadequados para uma Constituição Federal, sobretudo a nossa Carta Política, que é rígida, embora analítica. No mesmo sentido, acrescenta parágrafos aos arts. 97, l02 e 125, alterando substancialmente a Constituição Federal, e ainda estabelece uma sequência de vedações, como a contida na nova redação dada a letra “p” do art. 102, além de vedar ao STF decisões cautelares liminares e monocráticas contra atos emanados dos presidentes da República, do Senado, da Câmara Federal e do Congresso Nacional. Como consequência, se a matéria relevante tiver necessidade de uma decisão urgente, nada feito. Só o colegiado decide.

Essa PEC, como já foi evidenciado no curso deste texto, padece de grave inconstitucionalidade, porque contraria cláusula pétrea, consequentemente intangível de ser objeto de emenda constitucional pelo poder constituinte derivado. Primeiramente, agride a competência normativa interna do STF, prevista no art. 96, I, letra “a”, da Constituição Federal, e, num outro plano mais grave, tem nítida finalidade de reduzir a atuação constitucional do Corte Suprema de Justiça, consistente na guarda da Constituição Federal (art. 102, caput). Ademais, apenas para concluir: é sabido por qualquer estudante de direito que a Constituição do Brasil é classificada, como já foi dito acima, como rígida, não sendo possível suas normas serem modificadas, ao talante de qualquer legislador, sem observância dos rigorosos preceitos nela instituídos, não só com referência às alterações formais, mas também materiais. De outra forma, como já ocorreu no passado bem recente, se tem uma ditadura ou do Poder Executivo, que normalmente controla o Legislativo, e do Legislativo, que age de forma majoritária, de acordo os interesses, que estão submersos nas votações. Essas são as razões de se ter uma Corte de Justiça Suprema estável, independente, a gozar de garantias que não podem ser usurpadas, entre essas a vitaliciedade, objeto de um projeto que a extingue. Por isso mesmo, qualquer emenda substancial de alterar as garantias institucionais do Poder Judiciário só pode ser realizada pelo Poder Constituinte (em maiúsculo) originário, e não pelo poder derivado (em minúsculo), como pretendem os senadores acima citados. Por ora, só isso. Ainda volto ao tema.

* Membro da AML e AIL
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