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25/11/2023 às 00h00min - Atualizada em 25/11/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Democracia, sim; golpe, não 

O voto é o fundamento da democracia. É a essência da vontade popular, a consolidar o exercício do poder. E, reafirme-se, o Brasil é uma república democrática. O art. 1º da Constituição Federal não deixa dúvida a esse respeito, quando estatui alguns dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, ao dispor: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Desse modo, com simplicidade franciscana, é do conhecimento de todos que a Democracia foi construída através dos séculos, desde os gregos, para, a partir dessa origem, atender aos interesses de uma casta de privilegiados. Com Revolução Francesa, a Democracia se consolida e passa a ser modelo de governo que se contrapõe ao autoritarismo. Através do voto, o poder é exercido direta ou indiretamente por seus representantes. Assim, a Revolução foi o grande marco para supremacia da cidadania, haja vista que os revolucionários, inspirados pelos ideais iluministas – Voltaire; Denis Diderot; David Hume; Immanuel Kant; Adam Smith; Jean-Jacques Rousseau;

Montesquieu - acreditavam que a participação popular era o despertar para uma nova era contra o ancien régime, erigindo uma nova sociedade, transformada, com prevalência da razão e do exercício independente e harmônico dos poderes. Portanto, nada de o “Estado sou eu”, mas um estado leigo, sem participação do fundamentalismo religioso, então a regra vigente.

Em duas leituras por mim feitas, inspiradas na tão decantada eleição presidencial na vizinha Argentina, transcrevo dois excertos, que demonstram o quanto a democracia, esse regime de governo historicamente conquistado, está correndo sérios perigos, por outras razões:

O 1º – fato ocorrido nos EUA, país considerado democrático: “Em 5 de janeiro de 2021, uma coisa extraordinária aconteceu na Geórgia. Num estado onde a política vinha, havia muito tempo, sendo maculada pela supremacia branca, os eleitores compareceram em números inéditos para eleger seu primeiro senador afro-americano, o reverendo Raphael Warnocke, o seu primeiro senador judeu americano. Warnocke foi apenas o segundo senador negro eleito no Sul desde a Reconstrução, fazendo companhia ao republicano Tim Scott, da Carolina do Sul. Aquela noite, ele apresentou apoiadores à sua mãe, uma ex-trabalhadora rural, comentando que ‘as mãos de 82 anos que costumavam colher algodão para os outros colheram seu filho mais novo como senador dos Estados Unidos’. Para muita gente, a eleição pressagiava um futuro mais brilhante, mais democrático. ‘Um novo Sul está surgindo’, declarou LaTosha Brown, cofundadora da organização Black Voters Matter. ‘Um Sul mais jovem, mais diversificado […] e mais inclusivo.’ Era o futuro democrático que gerações de ativistas dos direitos humanos vinham trabalhando para construir. No dia seguinte, 6 de janeiro, o que os americanos testemunharam parecia inimaginável: uma violenta insurreição, incitada pelo presidente dos Estados Unidos. Quatro anos de decadência democrática tinham culminado numa tentativa de golpe. O medo, a confusão e a indignação que muitos americanos sentiram diante do desenrolar dos acontecimentos lembravam o que pessoas de outros países diziam ter sentido ao ver suas democracias desmoronarem. O que acabávamos de vivenciar — uma onda de violência com motivação política; ameaças contra funcionários ligados às eleições; esforços para dificultar o voto; uma campanha do presidente para anular os resultados da eleição — era um retrocesso democrático.” (In: Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como salvar a democracia (pp. 13-14). Zahar. Edição do Kindle).

O 2º – a insana tentativa de golpe no Brasil, o 8 de janeiro: “Levemente arqueada, ziguezagueando por entre móveis destruídos e poças d’água, Rosa Weber percorre o plenário do Supremo Tribunal Federal. Tendo entrado por uma das janelas quebradas, a presidente do STF abre caminho em meio às sombras se servindo da luz do celular. Às 21h03, com os sapatos molhados, diante da cadeira destroçada da presidência, ela se detém, retira o lenço que envolve seu pescoço e apruma o corpo. Entrega o celular ao secretário-geral do tribunal, Estêvão Waterloo, e pede que ele a fotografe em frente ao que restara daquela poltrona. Por imperícia do fotógrafo, o flash ‘estoura’ na face da ministra, deixando-a fúlgida contra o monturo informe e escurecido da mobília destruída. A escuridão daquele cenário de batalha, aliviada por feixes de luz, entristece a ministra. ‘Vou reconstruir’, ela diz, firme. E promete: quando o tribunal retomar os trabalhos, ela repetirá a foto, com o plenário já restaurado. A presidente da Corte então chora. Horas antes, pela tv de seu apartamento funcional, a ministra acompanhara atônita o ataque que golpistas aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro desferiam no tribunal, no Congresso e no Palácio do Planalto. (...) O rádio de frequência criptografada transmitia a mensagem do líder do pelotão de seguranças do stf que protegia o prédio onde fica o gabinete de Weber. A invasão ao Supremo ocorreu às 15h42 do dia 8 de janeiro de 2023, um domingo — mas os atos preparatórios remontavam a muito antes. Em seus quatro anos de mandato, Bolsonaro atacou o Supremo como nenhum outro presidente desde a redemocratização. Em sua conta no Twitter, logo no primeiro ano compartilhou um vídeo no qual ele era representado como um leão que lutava contra as hienas do stf e da imprensa. Contrariado com as decisões do Supremo durante a pandemia, citou o ditador fascista Benito Mussolini: ‘Melhor viver um dia como leão do que cem anos como cordeiro’. O recurso às metáforas do mundo animal era uma constante, como se a violência da vida selvagem expressasse melhor a relação de Bolsonaro com o Supremo — o inimigo que havia riscado uma linha em defesa da Constituição contra seu projeto autocrata. (...) Sob o comando do secretário de Segurança do Supremo, Marcelo Schettini (o Zero Um), a tropa de defesa do stf resistia sem apoio, depois que a tênue linha da Polícia Militar do Distrito Federal deixou de funcionar como barreira aos golpistas nas vias da Esplanada dos Ministérios que dão acesso ao tribunal.” (In: Recondo, Felipe. O tribunal: Como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária (pp. 13-14). Companhia das Letras. Edição do Kindle).

A história nos impõe sermos vigilantes. Escapamos do golpe bolsonarista, já que, se assim não fosse, o Brasil, como tem ocorrido no curso de sua história, mais uma vez, renegaria o regime de governo que Winston Churchill assim definiu: “...a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras formas que já foram tentadas na história.” E o que o conservador Edmund Burke disse: “Em uma democracia, a maioria dos cidadãos, é capaz de exercer a mais cruel opressão sobre a minoria.” Mas, Democracia é sempre Democracia, quer seja o pior ou o melhor regime de governo, na concepção de qualquer pensador. Rogamos para que a Democracia resista ao individualismo maléfico de Trump, como aqui, nesta nossa pátria, resistimos às nefastas aventuras ditatoriais de Bolsonaro. Na Argentina, prevaleceu o voto democrático. Disso não há dúvida. Pouco importa se foi eleito um ultraliberal conservador, ou mesmo um radical de direita ou de esquerda. Importa o exercício do processo eleitoral, em que foram cumpridas as regras constitucionais. Só isso. Sem golpe.

* Membro da AML e AIL
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