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21/10/2023 às 00h00min - Atualizada em 21/10/2023 às 00h00min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.


 

BOI DE ENGENHO

Faz anos, certa feita, numa tarde, em viagem à minha terra natal, na Baixada, estando de passagem pelo ENGENHO SÃO BENEDITO, deixei o retão da minha estrada, peguei a esquerda daquela confluência triangular e fui “decretado”, conversar como o decano TEODOMIRO AROUCHA, dono das terras e do Engenho São Benedito. Em lá chegando vi que o engenho estava em “plena moagem”. E pude ver que a moenda se situava ao complemento da casa-grande assoalhada. Então, aproveitando a mansidão e a tolerância daquele SENHOR DE GENHO, resolvi fazer-lhe “n” perguntas sobre os bastidores do “engenho de cana”, cioso de querer saber sobre aquilo, para o meu conhecimento em meras informações pessoais.

O Decano Teodomiro Aroucha com uma vara de açoite nas mãos e com aquela toda sua voz de barítono e vestido de sua paciência, tocando o gado na moenda; moenda que manda a “garapa” para a almajarra (manjarra na linguagem do trabalhador), me disse, de sua iniciativa, que “o boi de engenho, ao final da safra (da moagem), ele é levado de volta ao campo da sua origem (de onde veio). Ocorre que o gado acostumado à ração do pátio do engenho: bagaço de cana, olho de cana, folha de cana, resíduos de melaço, água adocicada de mistura ele (o gado), então volta ao pátio dominado pela gula da ração que lhe era servida no pátio do engenho, com absoluta fartura.

Na ocasião, mostrou-me na distância, um gado que havia voltado e, quieto, apascentava-se comendo a ração a que era acostumado. E eu fiquei vendo como é a vida. Os seres humanos não são diferentes. Basta ver: Acomodam-se ao bem-bom e às facilidades.

Lembro também de uma fala, ali, a respeito de gado que costumava ficar debaixo de mangueiras, no começo da safra frutífera, esperando uma manga cair. O gado “amolece os dentes”, não sai debaixo da mangueira e acaba emagrecendo, pois não come e não quer comer mais na nada, senão aquela manga adocicada e pouca e ainda assim disputando com gente ou outros animais em volta, debaixo da mangueira.

O boi de engenho é uma verdadeira “mão na roda” naquelas tarefas tantas, da moagem: Puxa o carro que carrega a cana, a lenha, a água, a madeira de lavra; a terra do aterro, o bagaço da cana, a produção do que tiver e tudo o mais. Abre caminhos e passagens. Outra coisa: O boi de engenho tem nome e atende pelo nome. Lento, “pé pesado”. É por natureza, preguiçoso qual um índio. Melhor mesmo é conduzir a tarefa, de acordo com a natureza do/s animal/is. Por vezes, na tarefa, conforme a tarefa, o boi “estanca”, deita-se ao chão. Aí não se levanta “nem com reza de cigano”, dizem/diziam os trabalhadores aborrecidos.

Outra coisa: O carro de boi com a sua cantareira “cantando” ao trabalho, desperta/va uma certa alegria, um contágio na seara do engenho de cana. Hoje, suas lembranças remetem aos encantos da saudade e de uma velha nostalgia.

 Submetidos que eram os bois a uma “canga” ao pescoço, trabalhavam de dois a dois. A essa dupla dá-se (dava-se) o nome de JUNTA. Junta de bois. As juntas de bois costumavam trabalhar integradas, equilibradas. De tal maneira que impunham esforço físico de forma proporcional e amistosa, sem que um gado com menor esforço, sacrifique ao outro. As JUNTAS, são sempre juntas, adaptadas ao serviço. Em um engenho de cana, pelo comum, tem várias JUNTAS de gado previamente estabelecidas. Melhor dizendo; estabelecidas conforme as jornadas que praticavam; juntas que são(eram) revezadas ao serviço, para manter o descanso intra-jornadas e o equilíbrio das tarefas dos animais.

Hoje, engenhos tocados a carro/s de boi naquele meu sertão não existem mais. E uns poucos engenhos que ainda resistem, agora com energia elétrica por todos os lados, muita coisa mudou nas jornadas de um engenho de cana.

De lembrar também que o senhor de engenho tem (tinha) dedicação especial pelos seus animais de serviço. Não os espanca, nem os sobrecarrega. Os mais possantes e mais resistentes, são levados a serviços mais rústicos, enquanto os menos possantes são levados tarefas mais leves, menos intensas. Os gados mais dóceis são tratados com a docilidade que fazem por merecer. Os mais agressivos e difíceis submetem-se à canga, ao domínio e a jornadas mais robustas.  É assim o dia a dia no engenho. “O boi de engenho é/ra uma mão na roda.”

Hoje não mais existe nem o ENGENHO SÃO BENEDITO, nem a força daquelas terras individuadas que se prestavam ao plantio e respectiva colheita da cana-de-açúçar; nem a voz concessiva de comando acessível do barítono e dono de tudo aquilo ali: O finado, saudoso e exemplar TEODOMIRO AROUCHA (Teodormiro Aroucha, na língua do povo – este que descansa pouco ali mais adiante, depois da Rodovia, depois do Zé de Mariana, no Cemitério de Santana, onde estão os demais seus.

* Viegas interpreta e questiona o social.
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