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21/10/2023 às 00h00min - Atualizada em 21/10/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

Gonçalves Dias: “Ó Saudade, ó rainha do passado”

Em palestra proferida no dia 8 de agosto de 2023, a escritora Ana Miranda sintetizou o poeta Gonçalves Dias, neste ano a comemorar-se o seu bicentenário de nascimento, em algumas lapidares frases, assim resumidas:  construiu uma nova linguagem poética, fortemente antieuropeia, sem subterfúgios. E ainda acrescenta: Gonçalves Dias é absolutamente verdadeiro; é o poeta formulador do rosto do Brasil. De fato. Gonçalves Dias foi um poeta revolucionário, que deveria continuar sendo objeto de estudo em nossas escolas, e não só neste momento em que se comemora seu bicentenário. Aqui, neste pequeno, mas importante espaço, muitas considerações estéticas podem ser feitas a respeito desse grande poeta maranhense. Isso a partir do prólogo da primeira edição dos Primeiros Cantos, quando ele próprio afirma: “Dei o nome de Primeiros cantos às poesias que agora publico, porque espero que não serão as últimas.” E esclarece o poeta do épico I-Juca-Pirama: “Muitas delas não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo regras de mera convenção; adaptei todos os ritmos da metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir.” Mais adiante, ao demonstrar a coragem de um revolucionário de uma nova poética, Gonçalves Dias não deixa dúvida a respeito das inovações de estilo que compunha a sua arte de fazer a poesia: “Escrevi-as para mim, e não para os outros; contentar-me-ei se agradarem; e se não... é sempre certo que tive o prazer de as ter composto.” Aí se encontra, nesse prólogo, o sentido transformador da poesia de Gonçalves Dias, que tinha consciência que nele também borbulhava um grande gênio e que precisava expor-se sem a preocupação de agradar ou não.

Ao analisar I-Juca-Pirama, Antônio Cândido, estudioso da literatura brasileira, diz tratar-se “dessas coisas indiscutidas que se incorporam ao orgulho nacional e à própria representação da pátria, como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as cores verde e amarela”. Esclarece ainda: ”I-Juca-Pirama tem uma configuração plástica e musical que o aproxima do bailado. É mesmo, talvez, o grande bailado da nossa poesia, com cenário, partitura e riquíssima coreografia, fundidos pela força artística do poeta.”

Esse ritmo coreográfico, musical, como se fosse um bailado, está presente nos primeiros versos da primeira estrofe: “No meio das tabas de menos verdores, / Cercados de troncos – cobertos de flores, / Alteiam-se os tetos d’altiva nação: / São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, / Temíveis na guerra, que em densas coortes / Assombram das matas a imensa extensão.” Na segunda estrofe, os últimos três versos: “São todos Timbiras, guerreiros valentes! / Seu nome lá voa na boca das gentes, / Condão de prodígios, de glória e terror!” E o canto do índio tupi, prisioneiro, na iminência de ser morto, que, embora seja o canto de morte e seja bravo e forte, precisa viver: “Meu canto de morte, / Guerreiro, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo Tupi. / Da tribo pujante, / Que agora anda errante / Por lado inconstante, / Guerreiros, nasci: / Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; / Meu canto de morte, / Guerreiros, ouvi.”

Gonçalves Dias, como poeta, não foi apenas revolucionário na arte de poetizar a cultura dos povos indígenas. Foi bem além. Como esclarece o escritor e crítico literário Wilton José Marques, foi O poeta do lá, título de sua obra, edição Edufscar (Editora Universidade Federal de São Carlos), 2014, com estas considerações: “Desde o seu aparecimento em Primeiros cantos (1846), a ‘Canção do exílio’, do poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias, tornou-se unanimidade geral, elevando-se praticamente de imediato à condição de topos literário. Dotado de ritmo envolvente e interiorizando-se fundo no imaginário popular brasileiro, o poema inaugurou um modo particular de representação da natureza tropical, contribuindo decisivamente para transformá-la numa espécie de metáfora nacional.”

Em O canto do Piaga e Deprecação, Gonçalves Dias, em face da fúria destrutiva do colonizador, dá voz denunciadora ao índio, que busca a proteção dos deuses para livrá-lo do mal. Numa das estrofes de O canto do Piaga encontra-se essa denúncia que não perdeu a sua atualidade: “Vem trazer-vos algemas pesadas, / Com que a tribu Tupi vai gemer; / Hão-de os velhos servirem de escravos / Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!”

O canto do Piaga e Deprecação são poemas que continuam, na essência da súplica contra o branco colonizador, bem atual. Não só, todos os cantos de Gonçalves Dias são poeticamente eternos. Tanto que escolhi como título desta nossa conversa um verso que, no bom sentido, pesquei do poema A saudade, publicado nos Novos cantos. Mas Gonçalves Dias é um poeta humanamente lírico, apaixonado pelo amor. No poema Se se morre de amor, o nosso poeta maior começa com esses belíssimos versos: “Se se morre de amor! – Não, não se morre, / Quando é fascinação que nos surpreende / De ruidoso sarau entre os festejos; / Quando luzes, calor, orquestra e flores / Assomos de prazer nos raiam n’alma, / Que embelezada e solta em tal ambiente / No que ouve, e no que vê prazer alcança!” Numa outra estrofe, o poeta diz que “Amor é vida; é ter constantemente, / Alma, sentidos, coração – abertos / Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos.” O amor, o eterno amor, e a vida são lutas renhidas. Amar é viver, e viver é amar. Não há vida sem amor.

* Membro da AML e AIL
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