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14/10/2023 às 00h00min - Atualizada em 14/10/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Krenak – Ideias para adiar o fim do mundo

Ailton Krenak, escritor indígena, com 70 anos de idade, eleito no dia 5 de outubro para a Academia Brasileira de Letras. Teve participação intensa na Constituinte, em 1987, quando representou a União das Nações Indígenas, e colaborou para incorporar as demandas dos povos originários à Constituição de 1985. Como escritor, é autor das obras Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro ancestral. É um intelectual respeitado, não só por ser de origem indígena, mas porque é palestrante de renome internacional, além de ativista das questões referentes ao eterno conflito entre o mundo havido como civilizado, composto pela denominada humanidade esclarecida, e a sub-humanidade, aquela que ele rotula de humanidade obscurecida.

A eleição do escritor Krenak para Academia Brasileira foi objeto de manifestação de acadêmicos que nele votaram, como o presidente da ABL, o jornalista Merval Pereira, e a acadêmica Heloísa Teixeira, que a enalteceram como um fato de grande relevância histórica. Disse Merval Pereira: “Krenak é um poeta, tem uma visão muito apropriada para esse momento em que o mundo está preocupado com o meio ambiente e a mudança climática. Tudo isso está embutido na sua vitória.” Heloísa Teixeira ressaltou que “a Academia está precisando, nesse momento, do marco regulatório (temporal), dessa representação aqui dentro.”

Nessas perspectivas, externadas por esses dois acadêmicos, deduz-se que a Academia sai do seu passadismo e avança a sua caminhada para um mundo que carece de preservação. Certo que a Academia foi fundada no final do século XIX, sob a inspiração da Academia Francesa. E traz ainda no seu perfil o conservadorismo de todo esse passado. Ainda assim, até porque um dos seus fundadores foi Machado de Assis, romancista respeitado universalmente, manteve a tradição de congregar grandes intelectuais brasileiros, a exemplo de Guimarães Rosa, Graça Aranha, Ferreira Gullar, porém negou acesso à grande poeta Conceição Evaristo. Coisas que acontecem, mas que apontam para um sentido mais conservador dessa secular instituição.

O livro de Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado pela Cia. das Letras, é em formato de livro de bolso. É pequeno no tamanho, porém muito forte no conteúdo. Fiz a leitura, como sempre faço, desde as orelhas. A partir dessa leitura inicial, tomei conhecimento que o novo integrante da ABL nasceu no vale do rio Doce, “um lugar – segundo o autor do texto de apresentação – cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração de minérios”. Nesta passagem, ressalta: “Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, de uma ‘humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô’.”

De fato, Krenak questiona o que é rotineiramente rotulado de humanidade em antítese à humanidade da natureza. No princípio, ressalva, eram os brancos europeus, que se outorgaram o direito de colonizar a não-humanidade, trazendo-a para o seio da civilização. Então, Krenak questiona: Somos mesmo uma humanidade? Nessa linha de pensamento, ele aprofunda as suas graves indagações a respeito dessa humanidade: “Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo de exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade.” Nesses atrevidos e consistentes questionamentos, Krenac põe o dedo na ferida: “Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte corporações espertalhonas vai tomando conta da terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios.”  E esses monstros corporativos são identificados, como “os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada minuto, espalhando shoppings pelo mundo”. Esses são modelos de progresso, que, na concepção desse novo acadêmico, reproduzem os mesmos ambientes, quer se esteja em Berlim, Nova York, Lisboa ou São Paulo. E conclui: “Parece que você está numa viagem com o Flash Gordon.”

Krenak, ao expor ideias para adiar o fim do mundo, faz referência a José Mujica, que afirma que o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. As pessoas desse nosso mundo foram transformadas em consumidores; não são mais cidadãos. E as crianças, desde a tenra idade, são ensinadas a serem clientes. Acrescento mais: passam a ser deseducadas a distância, na quietude do controle do celular. Conclui o mais novo integrante da ABL: “Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando.” No seu inconformismo crítico, Krenac, para adiar o fim do mundo, deixa esta indagação: “Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor?” Esse é um dos perfis do novo acadêmico da ABL.

* Membro da AML e AIL
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