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07/10/2023 às 00h00min - Atualizada em 07/10/2023 às 00h05min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Deus! ó Deus! onde  estás que não  respondes?

Volto ao nosso poeta condoreiro, e o faço tendo como mote inicial a sua súplica a Deus em face da crueldade da escravidão, cujo espírito de horror continua entranhado no fundo da alma daqueles que têm amor ao dinheiro, embora, numa atitude fantasiosa, como faziam os fariseus lá bem atrás, reverenciem Jesus com todo amor, mas o próximo nem tanto assim. Em Vozes d’África, Castro Alves eleva a sua súplica a Deus, para que a morte do seu Filho não seja em vão. Destaco estas duas estrofes que deixam aflorar o seu sentimento de desamparo:

“Cristo! embalde morreste sobre um monte Teu sangue não lavou de minha fronte A mancha original. Ainda hoje são, por fado adverso, Meus filhos — alimária do universo, Eu — pasto universal... Hoje em meu sangue a América se nutre Condor que transformara-se em abutre, Ave da escravidão, Ela juntou-se às mais... irmã traidora Qual de José os vis irmãos outrora Venderam seu irmão.”

Aí está a dor do poeta tão bem expressada desde o primeiro verso que canta a sua súplica ante o sofrimento do ser humano escravo, cujos direitos sequer existiam. Eram animais vendidos nos mercados e separados os filhos das mães, para que o lucro compensasse as viagens dos navios negreiros, para trazer do continente distante da África a carne humana negra para ser submetida à crueldade do jugo cruel do chicote. Em que pese todos esses relatos poéticos e dos livros de história, continuamos a viver entre o furor da Casa Grande e a submissão da Senzala. Fui, durante boa parte de minha vida, operário, trabalhando dia e noite para ganhar o necessário, manter os meus estudos e chegar esse pequeno estágio da minha vida. E trabalhava, já aos 14 ou 15 anos, se necessário, dia e noite. A luta era brava, como era a de muitos companheiros que viam o sol nascer para cumprir a sua tarefa. Muitos deles sequer tinham horário para refeição: as mulheres ou filhos traziam a comida às oficinas, onde, logo que absorvidas pelo organismo cansado, voltavam ao trabalho.

A escravidão do trabalhador brasileiro apenas ficou mais eufêmica: sem o chicote, sem o feitor e sem o capitão do mato, o qual saía em busca do negro fugitivo e o trazia vivo ou morto. Se vivo, era, desnudo, amarrado a uma estaca e chicoteado até a morte, e o seu corpo ficava exposto em decomposição como exemplo para aqueles que quisessem seguir o seu caminho. Hoje, o chicote, o feitor e o capitão do mato são materializados por métodos capitalistas. O dono do capital, com raríssima exceção, extrai do trabalho o lucro. O trabalhador é contemplado apenas com o mínimo suficiente para sobreviver com a sua família.

Em junho de 1868, Castro Alves conclui a última estrofe de Vozes d”África com esta súplica:

Basta, Senhor! De teu potente braço Role através dos astros e do espaço Perdão p’ra os crimes meus! Há dois mil anos eu soluço um grito... escuta o brado meu lá no infinito, Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

Continua sendo bem atual o grande vate baiano. Vejamos: todas as vezes que, neste Brasil de pretos, brancos, amarelos e de qualquer outra cor, se pretende humanizar, valorizando a pessoa como pessoa, não apenas como número estatístico, a elite estrila e combate, sempre lançando mão do surrado e inconsistente argumento de que a pátria amada ou não está na iminência de ser tomada pelo comunismo. O pior de tudo: esse pessoal não sabe sequer o que é comunismo. Pois bem, deixemos isso de lado.

A tentativa de golpe de 08 de janeiro é um triste exemplo da falta de massa cefálica da ignara massa de manobra do pessoal que financiou aquele criminoso movimento de depredação e de desrespeito à instituições. Ainda mais, na leitura que fiz do jornalista e escritor Florestan Fernandes Jr., constato estarrecido que, no STF, tem ministro que considera que aqueles horripilantes fatos foram produzidos pela ingenuidade dos golpistas. Diz Florestan:  “Lembro que no seu voto no julgamento anterior, em plenário físico, além de tentar atribuir a culpa da devastação à própria vítima – o governo recém-empossado, o Ministro André Mendonça afirmou que aqueles réus não tentaram dar um golpe, pois não havia planejamento. Sua ideia estreita de golpe só contempla a intervenção das forças armadas. Bem sabemos que não é assim; que por muito pouco, escapamos; que se não houver uma reprimenda exemplar aos golpistas, as intentonas golpistas se repetirão. Concluo aqui com a impressão de que a grande devastação nacional do dia 8 de janeiro - chamado dia da infâmia, aos olhos do Ministro André Mendonça, parece mesmo ter sido um passeio, um domingo no parque.” Como se vê, Castro Alves continua atualíssimo. E Deus está sendo usado como tribuna de enganação.
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