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23/09/2023 às 00h00min - Atualizada em 23/09/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

Fragmentos de distopias

Vivemos em um mundo distópico. Tudo indica que sim. Mas, em que pese essa dislexia social, passamos parte de nossa vida, lutando para construir nossas utopias. E a ideia de realizá-las, bem antes das distopias, é tão antiga quanto o mundo. Afirmam os pesquisadores do tema que quem primeiro fez uso da expressão distopia foi o filósofo e economista John Stuart Mill, ao discursar no parlamento inglês em 12 de março de 1868. E com o passar do tempo, a palavra popularizou-se, e está na moda, como contraponto de utopia, expressão a significar uma vida ideal que vem sendo construída desde A República, de Platão, até chegarmos à célebre Utopia, de Thomas More, filósofo e estadista inglês, cuja temática do seu pensamento fazia uma crítica à sociedade da sua época. Mas o que idealizara Thomas More? A partir de um diálogo imaginário com um personagem que participou das grandes navegações e conheceu uma ilha, onde nela se encontrava uma sociedade ideal, composta por cidadãos livres e felizes, erigiu uma sociedade sem propriedade privada e na qual as religiões tinham uma convivência pacífica. O parlamento, idealizado por esse filósofo inglês, agia de conformidade com os interesses do povo, assegurando aos cidadãos a prosperidade e a paz.

Essa utopia de More influenciou e serviu de sustentação idealista aos grandes movimentos libertários, nos quais o objetivo maior era a paz e a felicidade do povo.

Ao contrário dessa pregação utópica, o mundo está envenenado por condutas e atos distópicos: um mundo das aparências, das fake news, do poder do individualismo, da prosperidade de uns e da absoluta miséria de muitos e muitos outros.

O Brasil, como sociedade política ou não, está a navegar por essas ondas tormentosas e distópicas. Vejamos: um advogado vai à tribuna do Supremo Tribunal Federal, para defender seu constituinte, acusado da prática de vários delitos, não consegue fazer uma argumentação digna de um razoável estudante de Direito, e, ainda por cima, confunde alhos com bugalhos, ao citar Maquiavel, conhecidíssimo autor de O Príncipe, refere-se ao O Pequeno Príncipe, de autoria de Antoine de Saint-Exupéry, e, não se conformando com a extensão de sua burrice intelectual, ainda profere insultas contra ministros da Suprema Corte constitucional. Esse distópico advogado sequer teve o cuidado ético de se desculpar. Com certeza, sua clientela continuará se ampliando, e os seus clientes a pagarem polpudos honorários para passarem dias e noites na cadeia. Sem dúvida, os fins justificam os meios.

No julgamento do primeiro réu dos crimes praticados no dia 08 de janeiro deste ano, os ministros bolsonaristas Cássio Nunes e André Mendonça quase (quase mesmo) não conseguiram encontrar conduta que tipificasse a prática delitiva. Se dependesse desses “juízes”, o homofóbico e delinquente Aécio Lúcio – o primeiro réu submetido a julgamento - estaria absolutamente livre para continuar a sua trajetória criminosa. Na visão desses ministros, prevaleceu a visão distópica, ao exercerem a nobre função jurisdicional pagando favores devidos ao rei.

A esse respeito, o professor e advogado Cezar Roberto Bittencourt, renomado criminalista e autor de uma excelente obra de Direito Penal, adotada em cursos de Direito, manifestou a sua perplexidade ante o voto distópico, dado pelo Ministro Nunes Marques, fazendo-o nos seguintes termos: ““Eu, como professor de Direito Penal, me senti agredido, até ofendido intelectualmente. Não é possível que um ministro do Supremo não tenha o alcance de perceber a técnica legislativa que o crime [de golpe de Estado] está consumado”, ressaltou mais à frente. ‘É profundamente lamentável que o ministro não entenda a técnica legislativa utilizada pelo legislador’.”

Esse mundo da distopia nos transporta de uma vida ideal, de solidariedade, para um mundo de prevalência de interesses individuais e grupais. E isso ocorre em qualquer campo de convivência, ou de mera sobrevivência, como hoje se vê no âmbito da religiosidade. Quem tem mais, ganha mais; que tem menos, nada ganha.

Nas cenas cotidianas distópicas, vem à ribalta o granadeiro e terrorista Roberto Jefferson, que ostenta o título de advogado. Decretada a sua prisão, por descumprimento de medidas cautelares, fixadas em decisão do STF, ao ser cumprido o mandado, recebeu os policiais federais a bala, disparando mais de 50 tiros de fuzil, além de dispor, para sua resistência a uma ordem judicial do STF, de três granadas, recheadas de pregos. Tentou matar os policiais, que estavam no cumprimento do seu dever. As distopias: se fosse um negro ou favelado, seria imediatamente morto. Já o terrorista Jefferson alegou que atirou para assustar os policiais. E ainda há aqueles que devotam uma fé genocida nessas mentiras cabeludas, ou mesmo que sejam carecas, a depender do statu de quem mente.

Essas são algumas de nossas distopias, que estão a se proliferar. Na sustentação do desembargador-advogado de um dos golpistas do dia 8 de janeiro, consta que o réu apenas entrou no Palácio do Planalto para proteger-se das bombas e tiros da polícia, durante os protestos. No entendimento distópico do Ministro Cássio Nunes, que tão só condenou os criminosos pelos delitos de dano qualificado e deterioração de patrimônio, essa é a pura e indiscutível verdade. Sendo ou não verdade, só nos resta a opção de comer brioche, lembrando a frase não dita por Maria Antonieta.

* Membro da AML e AIL
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