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16/09/2023 às 00h00min - Atualizada em 16/09/2023 às 00h00min

Crôniica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


 

Um passeio pela saudade 

A vontade desse passeio surgiu de dois momentos não simultâneos, mas sucessivos. O primeiro momento se deu com a minha ida a uma oficina que fica nas imediações da Igreja de São João; e o segundo veio com a releitura da crônica de Rubem Braga, Recado de Primavera, escrita e publicada em setembro de 1980. Creio que essa crônica-poema reflete sentimentos do tempo em que os nossos olhares e sentidos mais românticos se embeveciam em perscrutar a beleza do tempo. Recado de Primavera é uma belíssima crônica, recheada do frescor primaveril da poesia, que Rubem Braga fez, como epístola sentimental, ao poeta e amigo Vinícius de Moraes. E o velho Braga inicia numa linguagem simples e repleta de poeticidade, reportando-se ao poeta do Soneto de fidelidade: “Meu caro Vinícius de Moraes: Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. (...) O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois um Sudoeste com chuva e frio. (...) O sinal mais humilde da chegada da Primavera vi aqui junto de minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. (...) Agora vou ao Maranhão, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.”

Pois é. Esses dois momentos: um real, mas num contexto poético, e o outro essencialmente poético me impuseram esse passeio pela saudade, a considerar que a poesia está em tudo, como já afirmara o poeta de Vou-me embora pra Pasárgada!, ao tratar desse tema no texto O poeta e a poesia, em que conta o segredo do seu itinerário poético e diz: “...na companhia paterna ia-me embebendo dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.” E acrescenta: “Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer.”

Esses dois momentos, embora me impusessem o percurso lírico pelo passado, fizeram lembrar-me de duas frases que as guarda, como tesouro sentimental, no recôndito de minha memória. Cito-as: - Deve-se compreender que não é possível fazer o passado retornar; mas pensar nele como passado. - O passado não está morto e enterrado. Na verdade, ele nem mesmo é passado. Minha conclusão: o passado é o presente insistente no hoje de nossa vida. E não adianta, por mais que se queira, negar o passado.

A Igreja de São João, ali bem na rua da Paz, me faz retornar ao tempo de um passado que se encravou na minha memória. Lá era uma das paradas obrigatórias do bonde, que vinha do canto da Viração. Não sei se ainda é assim conhecido. Mas o bonde da linha São Pantaleão, para chegar à praça João Lisboa, fazia a manobra, descendo a rua da Paz e parava bem ao lado da Igreja de São João. Nas imediações, havia, como ainda há muito mais, várias lojas comerciais, sapatarias, alfaiatarias e oficinas de costuras.

Entrei na igreja, rezei um pouco e tomei o rumo da rua da Paz. Logo de frente, vi a casa do Desembargador Tácito Caldas. Uma referência como civilista, na Faculdade de Direito, da rua do Sol, em frente ao Teatro Arthur Azevedo. À época, ainda estudante, o conhecia apenas de vê-lo, ao chegar para as aulas. Não foi meu professor. Mas já advogado e exercendo a profissão em Imperatriz, algumas vezes estive na casa do professor Tácito Caldas, que, aposentado, acompanhou alguns dos recursos que interpus junto ao Tribunal de Justiça. Ouvia-me sempre com atenção, e tinha por mim um apreço intelectual, porquanto conversávamos sobre as teses jurídicas expostas nos recursos. Nesse momento de lembranças, é como se tivesse a ouvir o badalar do toque de advertência do motorneiro no aviso da chegada e da partida do bonde. E tudo me faz lembrar da praça João Lisboa, onde, outrora, descia do bonde em frente à Farmácia Central e seguia em direção ao Ferro de Engomar, no sentido da avenida Magalhães de Almeida, para, nos domingos, assistir ao programa O Domingo é Nosso, apresentado por Lima Júnior, tendo como astros Roberto Müller, o Pingo de Ouro do rádio maranhense, Orlandira Matos, Escurinho do Samba, Dupla ponto e Vírgula e outros artistas. Nesse programa, algumas vezes, como caloura, apresentava-se, com aplausos, Alcione Nazaré, hoje essa consagrada estrela da canção brasileira.

Fui à rua Grande. A sua grandeza humana continua eterna. Lá é onde os vendedores sustentam a sua vida e da família. Tem até churrasco grego. Fui ao Éden, o cinema da minha soirée preferida. E o vento levou..., Gatilho Relâmpago, Os homens que são feras, Madame X, Poderoso Chefão... Não são apenas lembranças, mas a saudade que se conjuga com o sentimento de felicidade. Ainda assim, não esgotei as lembranças. Subi a rua Grande e cheguei até a Galeria, a primeira grande livraria que enobrecera aquela rua, onde o bonde, para chegar à rua do Passeio, badalava a sua sineta, para advertir o transeunte distraído, na sua imponente passagem sobre os trilhos.   

Nesse passeio, fico por aqui, conforme diz na crônica o velho Braga. E fico a pensar se ainda é possível viver em sonhos toda essa saudade.

* Membro da AML e AIL
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