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26/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 26/08/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

De poema em  poema, poesia

Clarice Lispector faz das suas crônicas verdadeiros poemas. São puros sentimentos poéticos que Clarice extravasa, falando de si, do mundo, das coisas que contêm ou não o amor, ou ainda da glorificação de amar o nada, das encruzilhadas que vai encontrando pelo caminho da vida, do grito e do cansaço de escrever, como o fez na crônica ou não crônica O grito: “Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! de cansaço. Estou cansada! É óbvio que o meu amor pelo mundo nunca impediu guerras e mortes. Amar nunca impediu que por dentro eu chorasse lágrimas de sangue. Nem impediu separações mortais. (...) O mundo falhou para mim, eu falhei para o mundo. Portanto não quero mais amar. O que resta? Viver automaticamente até que a morte natural chegue. Mas sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é de amparo do amor.” Nessa pequena passagem e de tantos outros escritos de Clarice, aí está ela, poeticamente inteira, e, no Amor a ele, vai a fundo dos seus sentimentos para dizer que “através de meus graves erros – que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles – é que cheguei a poder amar. Até essa glorificação: eu amo o Nada.” Ao chorar a morte de Sérgio Porto, exalta-se e deixa transparecer a dor poética do seu sentimento de perda; “Não quero mais gostar de ninguém porque dói. (...) Meu mundo é feito de pessoas que são as minhas – e eu não posso perdê-las sem me perder.”

Clarice fez das crônicas um poema em cada linha da sua arte de escrever. E o faz com rigor sentimental quando discorre sobre A descoberta do mundo, a partir do primeiro parágrafo: “O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu quereria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.” Mas, e da solidão quem nos salva? É ela mesma quem responde: “O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento da solidão.”

Essa é Clarice Lispector, sempre a nos despertar para o mundo dos sentimentos com o seu grito de cansaço. Tive o prazer de ser o seu leitor semanal, no Caderno B, do Jornal do Brasil. Lá, naquele espaço, o leitor se encontrava com ela, Marina Colasanti e Carlos Drummond de Andrade. O seu grito de cansaço permanece até os dias atuais, com a sua obra literária sendo reeditada. É um grito atemporal, que nos salva da solidão.

Mas nem só de Clarice vive-se a poesia. Mas ela é fundamental. O fazer poema é escreviver os sentimentos do mundo. A poeta mineira Conceição Evaristo foi quem melhor expressou a arte do fazer poético. Estamos a viver todos os sentimentos de um dos poetas maiores do Brasil: Antônio Gonçalves Dias. O maior dramaturgo da poesia romântica. Lírico. Épico. Dramático. Transformou o amor à terra e ao homem, retratado nos povos originários, os indígenas, em páginas eloqüentes de cantos, que se perpetuaram na arte da poesia eterna dos sentimentos mais profundos que esse caxiense soube exaltar: Canção do exílio, O canto do guerreiro, O canto do piaga, Deprecação, A leviana, Delírio, Ainda uma vez, adeus!, I-Juca-Pirama, Se se morre de amor, Olhos verdes, Canção do Tamoio e tantas e tantas obras-primas, que devem fazer parte do canto do nosso cotidiano, a romper o grito de cansaço, referido por Clarice, porque, como exalta Gonçalves Dias, “a vida é luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos, / Só podem exaltar.”

No lirismo de Delírio, dois versos são suficientes para externar o sentimento maior do sonhar: “Acordo do meu sonho tormentoso / E choro o meu sonhar!”. O poeta quer nos dizer que não só viver é lutar. Mas viver também é sonhar. No mesmo sentido lírico este verso do poema Espera: “Ó saudade, ó rainha do passado,” Saudade, passado. Do passado a saudade, como um sonho a exigi-lo no presente. E saudade impõe o passado no tempo apenas da lembrança. Sonhar é sempre possível. O poeta tem consciência dessa realidade, que a saudade não desfaz.

Manuel Bandeira foi o meu poeta inicial, como o foi Gonçalves Dias, cujos poemas, como Canção do exílio, eram declamados no grupo escolar. Desencanto, de Bandeira, sempre me alertava para arte do poema e da poesia: “Eu faço versos como quem chora / De desalento... de desencanto... / Fecha o meu livro, se por agora / Não trens motivo nenhum de pranto.” E o último verso desse poema: “- Eu faço versos como quem morre.”

Já Cecília Meireles nos lega o seu belíssimo poema Motivo: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta. (...) Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / - mais nada.” E a nossa poeta Laura Amélia, em A humana comédia, faz um resumo do mundo: “os dias / inferno / as noites / purgatório / quem me levará ao paraíso?” Quem sabe a resposta esteja no poema Galileu: “a vida gira / o amor / revira / a vida / a vida / revira / o amor / amorgirando / reviravida.”

Para os poetas valem todos os sentimentos do mundo, traduzidos em versos, ou não versos, pincelados, esculturados ou musicados, sob o estético ornamento da doce e eterna poesia.

* Membro da AML e AIL
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