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19/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 19/08/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

I-Juca-Pirama 

Tem-se falado e cantado sobre a extensa e grandiosa obra de Gonçalves Dias. Não apenas um poeta, mas, sobretudo, um poeta de dimensão universal. Lírico. Épico. Dramático. O poema I-Juca- Pirama, na concepção de Antônio Cândido, em obra de sua autoria, Formação da literatura brasileira, “é dessas coisas indiscutidas que se incorporam ao orgulho nacional e à própria representação da pátria, como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as cores verde e amarela. Por isso mesmo, talvez, a crítica tem passado prudentemente de longe, tirando o chapéu sem comprometer-se com a eventual vulgaridade deste número obrigatório de antologia e recitativo. No entanto, é dos tais deslumbramentos que de vez em quando ocorrem em nossa literatura. No caso, heroico deslumbramento, com um poder quase mágico de enfeixar, em admirável malabarismo de ritmos, aqueles sentimentos padronizados que definem a concepção comum de heroísmo e generosidade e, por isso mesmo, nos comprazem quase sempre. Aqui, porém, o poeta inventou um recurso inesperado e excelente: o lamento do prisioneiro, caso único em nosso Indianismo, que rompe a tensão monótona da bravura tupi graças à supremacia da piedade filial”.

Na visão analítica de José Veríssimo (In; História da literatura brasileira: do período colonial a Machado de Assis), ao tratar de Os Timbiras, poema épico inacabado, que, dos dezesseis cantos, só foram concluídos quatro, refere-se à grandeza poética de I-Juca-Pirama, quanto a sua sobrevivência como obra de arte literária, afirmando que “os Timbiras, como as Americanas, não só ficariam, a todas as luzes, os mais belos poemas de inspiração indianista aqui produzidos, mas os únicos que sobrevivem aos motivos ocasionais dessa inspiração e ao gosto do momento. Um deles, I-Juca-Pirama, é sob todos os aspectos, essenciais ou formais, uma das raras obras-primas da nossa poesia e ainda de nossa língua”.

Não há nenhuma dúvida, nem qualquer resquício de bairrismo, que esse poema épico e dramático – I-Juca-Pirama – é uma das mais perfeitas e esteticamente elaborada obra da literatura brasileira. É um diálogo dramático entre os guerreiros Timbiras e o índio prisioneiro, que deve, com coragem e sem lágrimas que denotem temor, enfrentar a morte.

O ritmo e a metrificação do poema vão se alternando, como se fossem música, num bailado anapéstico: Meu canto de morte, / Guerreiro ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; ; Guerreiros descendo / Da tribo Tupi.” Mas, esse guerreiro da tribo Tupi recebera a sentença de morte: “Morrerás morte vil da mão de um forte.” E desafiado a cantar os seus feitos. Ele aceita o desafio e dá início ao seu canto: Sou bravo, sou forte, / Sou filho do norte; / Meu canto de morte, / Guerreiros, ouvi. / Não vil, não iganaro, / Mas forte, mas bravo, / Serei vosso escravo: / Aqui virei ter. / Guerreiros não coro / Do pranto que choro; / Se a vida deploro, / Também sei morrer.”

O guerreiro Tupi chorou, embora cantasse ser bravo e ser forte. Soltai-o! – diz o chefe (dos Timbiras). – És livre; parte. Responde o guerreiro Tupi: - E voltarei. – Debalde, desaconselha o chefe indígena que o aprisionara. – Sim, voltarei, morto meu pai. – Não voltes!, responde-lhe o chefe.

No seu canto de morte, o guerreiro da tribo Tupi pede para deixá-lo viver e se refere ao velho pai: “Ao velho coitado / De penas ralado, / Já cego e quebrado. Que resta/ - Morrer. / Em quanto descreve / O giro tão breve / Da vida que teve, / Deixai-me viver!”

Todo o desenvolver do drama do guerreiro-prisioneiro, que chora, por amor ao pai, velho e cego, na espera da morte, e pede para viver, dá a I-Juca-Pirama um realismo-romântico, porém não descaracteriza a bravura do indígena em vista da sua piedade filial, que também afeta o chefe da tribo que o aprisionou. Ainda é Antônio Cândido quem reforça, numa acepção mais ampla, esse entendimento: “A rotação psicológica do poema, as alternativas de pasmo e exaltação, se realizam de modo impecável na estrutura melódica, nos movimentos marcados pela variação de ritmo e amparados na escolha dos vocábulos. Bem romântico pela concepção, tema e arcabouço, o “I-Juca-Pirama” tem uma configuração plástica e musical que o aproxima do bailado. É mesmo, talvez, o grande bailado da nossa poesia, com cenário, partitura e riquíssima coreografia, fundidos pela força artística do poeta.”

No curso do drama, inicia-se o diálogo entre o filho guerreiro e o pai, já cego e quebrado, à espera da morte:

“- Filho meu, onde estás? – Ao seu lado; - Mas tu tremes! – Tu prisioneiro, tu/ - Vós o dissestes. – Dos índios/ - Sim. – De que nação/ - Timbiras. – Nada fiz; mas souberam da existência / De um pobre velho, que em mim só vivia... / E depois/... – Eis-me aqui. O velho pai, cego e quebrado, que não aceita a fraqueza do filho valente, lança a sua devastadora reprimenda: “Tu choraste em presença da morte? / Na presença de estranhos choraste? / Não descende o cobarde do forte; / Pois choraste, meu filho não és! / Possas tu, descendente maldito / De uma tribo de nobres guerreiros, / Implorando cruéis forasteiros / Seres presa de vis Aimorés.” O bravo índio guerreiro, que ressurge na Canção do Tamoio, com toda a sua força de luta e enfrentamento, não pode chorar: “Não chores, meu filho; Não chores, que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos, / Só pode exaltar.” I-Juca-Pirama, numa releitura, dialoga com o mundo dos fortes e fracos que estamos a viver e superar. Enfim, esta verdade poética: o cobarde não descende do forte.

* Membro da AML e AIL
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