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12/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 12/08/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

Um dia na vida do garçom Felipe do Nascimento

E não foi um dia qualquer. Foi um dia fatal. Trágico. Que o pegou desprevenido, para afastá-lo em definitivo do convívio  com a sua mulher, filhos, com todos os seus familiares, amigos e  com as pessoas amigas, bem como  com os clientes a quem atendia como dedicado e atencioso garçom. A notícia dessa tragédia anunciada traz estas informações: “247 - No último trágico episódio ocorrido em Guarujá, no litoral paulista, um garçom exemplar e querido pela comunidade local perdeu sua vida de forma injusta. Filipe do Nascimento, um jovem de apenas 22 anos, era conhecido por sua pontualidade e dedicação ao trabalho. Como funcionário de um estabelecimento comercial, ele sempre se mostrou comprometido, sendo um dos que mais vendiam e cativavam clientes com seu carisma. Segundo Douglas Brito, seu patrão, Filipe era um rapaz que não tinha o hábito de faltar e gozava de grande simpatia, tanto entre o pessoal do local como entre os frequentadores. Caracterizava-se por sua postura positiva, evitando falar mal dos outros e, na maior parte do tempo, preferindo ser reservado em suas palavras, segundo o g1. No entanto, ele se permitia tirar brincadeiras com os mais jovens, trazendo leveza ao ambiente.”
 
Como se conclui desse rápido perfil, elaborado pelos editores de notícias policiais, redigidas no sangue das tragédias cotidianas, Felipe do Nascimento não era um desses beneméritos, que, para se fazerem homem de bem ou cumpridor das determinações divinas, aplica parcela do seu salário para aparecer em destaque nas páginas das nossas mídias impressas ou eletrônicas, ou para ter um lugarzinho garantido no céu. Ao contrário dele, o deputado Eduardo Cunha, como consta nesses mesmos noticiários, aplicou mais de trezentos mil reais em pagamento de dízimo. Cunha, corrupto, cassado, preso, assegurou o seu lugarzinho no céu. Até hoje é adorado por essa turma do dinheiro fácil, a viverem da prática do estelionato, a usar, como mercadoria,  o nome de Deus e de Jesus. Não é caso de Felipe do Nascimento. Nenhum culto e nenhuma missa foram ofertados a esse garçom, vitimado pela sanha assassina de uma polícia, que resolveu instituir a pena de morte nesta nossa pátria amada.

Natural de Pernambuco, Felipe tinha uma família, constituída pela mulher e três filhas – uma biológica e duas afetivas. Havia saído de casa para comprar macarrão, segundo contou a sua mulher para o seu empregador. Foi assassinado com tiros de fuzil. A notícia do seu brutal assassinato, justificado por uma suposta legítima defesa, detalha o seguinte: “A esposa de Filipe disse ao seu patrão que ele havia saído de bicicleta, por volta das 20h, para comprar macarrão em um mercado próximo de sua residência.” Mais estas informações: “No entanto, sua vida foi interrompida de forma trágica durante a Operação Escudo, organizada após a morte do soldado Patrick Bastos Reis, resultando em um total de 16 mortes até o momento da reportagem. O boletim de ocorrência registrou o acontecimento como morte decorrente de intervenção policial, justificada como legítima defesa pelos policiais envolvidos. Conforme relatos dos agentes da Polícia Militar, ao adentrarem uma viela no bairro Morrinhos 4, foram surpreendidos por um indivíduo que surgiu na porta empunhando uma arma. Neste momento crítico, um sargento e um cabo responderam com disparos de fuzil a cerca de 2,5 metros de distância de Filipe. Entretanto, a morte prematura de Filipe do Nascimento causou perplexidade e indignação na comunidade local. A família e amigos do garçom questionam a narrativa da legítima defesa, reforçando que ele não possuía histórico criminoso e não tinha envolvimento com atos ilegais. Além disso, acredita-se que a situação poderia ter sido tratada com menos letalidade, evitando uma tragédia que deixou todos consternados.”

A esse tipo de atrocidade policial obrigo-me, como cidadão brasileiro desta atormentada pátria, a apelar para os princípios fundamentais e norteadores, previstos na Constituição da República do Brasil. E pergunto a mim mesmo e para quem quiser se preocupar com o caminhar desastrado de nossa história: - Ainda tem vigência no Brasil o princípio fundamental – uma espécie de superprincípio – da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF)? Ou é apenas uma norma ilustrativa, nem sei se apenas para inglês ver? Essa indagação se faz necessária, porque, algum tempo atrás, na época da barbárie do ladrão de galinha (delinqüente extinto da nossa história cotidiana), a polícia, quer civil ou militar, não matava tanto, ou, se o fazia, estava amparada em justa causa. Nos tempos atuais, sob as mais fúteis justificativas, a matança é a regra: cinco, seis, dez, dezesseis assassinados, e vai por aí afora.

Referir-se aqui à dignidade de pessoa é perda de tempo. Essa garantia, como direito fundamental, está a ser vilipendiada ao arbítrio do agente público: policial ou não policial. Já os animais domésticos, hoje, estão mais protegidos do que o ser humano. Maltratar um cachorro ou um gato é um Deus nos acuda. Mas um favelado, um preto, pobre, uma prostituta, um morador de rua são assassinados, a toda hora, e a sociedade, embora se diga cristã - católica, protestante, umbandista ou espírita - admite e, até mesmo, pasmem, comemora a hediondez dessa prática como fato natural. Isso, em que pese Cristo ter ensinado que um dos mais importantes mandamentos é amarmo-nos uns aos outros como se amássemos a nós mesmos. E Cristo não apenas o recomenda como regra de convivência, ordena: ameis uns aos outros. Esse é o mandamento do amor.  Nele não está inserido: matai uns aos outros. Amor é essência da vida. E a violência, sobretudo a do Estado, é geradora do ódio, da dissidência, do desamor, de todas essas tragédias que estão sendo disseminadas, como panaceia para os nossos problemas sociais.

“Enquanto a investigação prossegue, a lembrança de Filipe permanecerá viva na memória daqueles que o conheceram como um jovem alegre, trabalhador e cheio de sonhos. Sua partida precoce suscita reflexões sobre a importância de buscar soluções menos violentas para conflitos, e reforça a necessidade de um diálogo constante entre a sociedade e as forças de segurança, na busca por um futuro mais justo e seguro para todos.” Fica essa meditação, para que possamos ter uma sociedade sem a mácula da violência estatal e do desamor institucionalizado.

* Membro da AML e AIL
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