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05/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 05/08/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 

Todo cuidado é pouco... com seu Tarcísio

E muito cuidado, viu?! Há perigo à vista. Seu Tarcísio não conseguiu ver, ou mesmo perceber, quaisquer resquícios de violência ou abuso, ou mesmo alguma desproporcionalidade, na chacina perpetrada pela polícia militar do governo paulista, ao matar ou assassinar dez pessoas, pelo menos consideradas, e ainda consideradas, seres humanos, sejam suspeitos ou não, que foram sendo eliminados a tiros de fuzil, ou metralhadora, ou alguma coisa semelhante, em série seqüenciada: um aqui, dois ali, três acolá.

O seu Tarcísio, que almeja chegar à presidência da República, seguindo a linha bolsonarista de desgoverno e brutalidade, com clara pigmentação de estelionato, está a demonstrar que a sua polícia será apenas utilizada para reprimir matando os pepês da vida, a saber: pobres e pretos, que grassam nas nossas favelas e mocambos. A pergunta que exala dessa podridão social é: qual o projeto de governo do seu Tarcísio, ora em execução, que esteja sendo aplicado no campo ressocializador da educação, que tenha como fim a humanização desses fatores de desigualdades sociais e econômicas? Resposta que não se cala: nenhum. Matar, como ato de vingança pela morte de um policial, na base do quatorze por um, resolve? Não. E não resolverá nunca. De outro modo, o grande pensador social Cesare Beccaria (quem sabe quem é? seu Tarcísio sabe?), que deixou para história do Direito Penal a sua célebre obra Dos Delitos e das Penas, sequer teria existido, ou mesmo teria sido objeto de estudos nos bancos das faculdades de Direito, neste Brasil das chacinas oficiais e por este mundo afora.

Insisto: cuidado, muito cuidado com seu Tarcísio! Um matador perigoso. Ou, se não, um perigoso protetor de criminosos. Hoje são os pepês da vida. Amanhã, o alvo da violência, sob o fundamento não provado de confronto armada, é um de nós, ou de nossos filhos. Pouco interessa o número quatorze e as vitimas das atrocidades, como estratégia de alardear: a força pela força, quem mijar fora do caco vai estirar-se numa cova rasa, morada última dos atrevidos que, por reles motivos, resistam à voz do policial militar armado e a cumprir a patriota missão de vingança.

É assim que se quer que seja? Se for assim, e com desrespeito às leis, entre as quais a Constituição Federal, que garante como direitos fundamentais o devido processo legal, um julgamento justo e não justiceiro, porquanto essa garantia continua em plena vigência, até porque se trata de cláusula pétrea, como a presunção de inocência, e isso a dizer-nos que o indiciado, o réu, o processado é inocente até que o Estado (com “e” maiúsculo) prove a sua culpa – prove mesmo, não bastando meras ilações do tipo “eu penso assim”, ou o desastrado julgamento arbitrário  do “esse é o meu entendimento, e pronto”, desaguando assim no falei tá falado. A prova é prova, com racionalidade material e lógica. Não é, como veio a público o seu Tarcísio, declarar, do alto da sua onisciência de governador do Estado de SP, que, numa diligência policial de uma semana ou mesmo dez dias, não houve excesso ou desproporcionalidade em ser mortas a tiros dez pessoas, cujo número de vítimas ele, seu Tarcísio, na imponência da sua verdade absoluta, reduziu para oito pobres e pretos, traficantes ou não, usuários ou não, de drogas.

E o cumprimento da lei seu Tarcísio? Como fica? Só vale para um lado? Ou a lei, como ordenamento da sociedade, tem abrangência para todos, independentemente de ser pobre, preto, rico, policial, juiz ou juíza de direito, deputado ou deputada, senador ou senadora, ou nada vale. Se assim não for, prevalece a carcomida lei do mais forte: cada um por si, a agravar estes novos tempos de truculência de lado a lado. Volta-se à época da pré-história, em que a vingança era a regra suprema: assim, quem for podre que se quebre.

Na ótica beccariana, vamos, de passagem, examinar o nosso vetusto, mas ainda vigente, Código Penal. O que ele diz sobre as excludentes da criminalidade. Mas não quero aqui assumir ares professorais. Longe de mim. Confesso, é verdade, andei mexendo nisso algum tempo. O meu exame não é enfadonho. Tem a sutileza da rapidez. Vejamos, pois.

O nosso Código Penal, de 1940, no decurso desses anos todos e, em face das transformações sociais, culturais e econômicos, sofreu várias alterações para se adaptar hermeneuticamente às novas realidades do mundo em que vivemos. Sabemos: o Direito, como ciência, é fato social. O crime continua sendo um fato típico, previsto na norma penal, ilícito e culpável. Nem sempre que haja violação da lei penal significa que o crime tenha sido praticado; às vezes, a conduta é típica, mas está destituída de antijuricidade. Tem-se a exclusão da ilicitude, excluindo o crime, em face da ocorrência do estado de necessidade, da legítima defesa e do estrito cumprimento do dever ou do exercício regular do direito. São excludentes de ilicitude que não podem apenas, aleatoriamente, ser afirmadas. Seus requisitos têm que estar devidamente provados. Por isso, no julgamento pelo tribunal do júri, a defesa tem imensas dificuldades de sustentar essas teses, objetivando absolver o acusado.

O fato de o homicídio ser praticado por um policial não o isenta de provar que o fez acobertado por uma dessas excludentes da ilicitude. Não basta alegar. Se não provar os seus requisitos constitutivos, deve sofrer a condenação, com a perda da função, quer seu Tarcísio queira ou não. Sendo provada a excludente, deve ser absolvido. A lei é lei e deve ser cumprida, seja a vítima preta, pobre, rico, civil, policial, pastor, padre, traficante ou usuário de drogas. Em seu art. 5º, inc. XLVII, a Constituição da República proíbe a pena de morte,. Por ser essa norma cláusula pétrea, não pode ser alterada, por qualquer meio. Com civilidade, aguardemos o desenrolar dos fatos, com os cuidados que a nossa cidadania reclama.

* Membro da AML e AIL
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