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22/07/2023 às 00h00min - Atualizada em 22/07/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Da poesia da crônica ao mal-entendido fascista 

Estava eu às voltas com Fernando Sabino, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade, relendo algumas das suas poéticas crônicas, nas quais o fato deixa de ser fato e, numa linguagem que atravessa a eternidade do tempo, sai do mundo trivial e se humaniza, brotando do falar dos cronistas sentimentos que nem todos conseguem ver no nosso cotidiano. Em A última crônica, Fernando Sabino entra num botequim da Gávea para tomar um café ao balcão, na esperança de adiar o momento de escrever, pois diz ele: “Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz digna de ser vivida.” Esse é o cronista e a sua missão. Ele olha atentamente, ou mesmo de relance, o pássaro que mergulha na busca de água e retira desse gesto da natureza todo um sentimento de poesia, que fez Chico Buarque perceber os olhos fundos de Carolina, a guardarem tanta dor, “a dor de todo esse mundo”.

Falei de Fernando Sabino, um dos meus cronistas preferidíssimos, e de Chico Buarque, eternizado em inúmeras canções e em letras que não são apenas letras, mas imortais poemas por ele criados para este nosso mundo repleto de contradições humanísticas. Não consigo esquecer do lirismo da modinha Até pensei, cujos versos trazem todos os sentimentos líricos de quem ama. Vejamos:

 
“Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia
Lá toda balão caía, toda maçã nascia
E o dono do bosque nem via

Do lado de lá tanta aventuraE eu a espreitar na noite escuraA dedilhar essa modinhaA felicidade morava tão vizinhaQue, de tolo, até pensei que fosse minha

Junto a mim morava a minha amadaCom olhos claros como o diaLá o meu olhar vivia de sonho e fantasiaE a dona dos olhos nem via...”

Após Fernando Sabino e Chico, faço a releitura da crônica Luto da família Silva, de Rubem Braga, que fora publicada em junho de 1935. A percepção estética do velho Braga era de deixar embevecido o seu leitor daquele tempo, e continua embevecendo os leitores de hoje. A arte é sempre arte. O tempo não a reduz sequer um milímetro do seu significado estético.

Em Luto da família Silva, o velho Braga inicia contando a história da morte de um homem, cujo corpo se encontrava deitado na calçada, numa poça de sangue. A Assistência, assim era o nome que lhe era dado na época, foi chamada. O homem já estava morto. O cadáver foi levado para o necrotério. Os fatos chegam ao Diário. João da Silva era o nome do morto. A dúvida: quem é João da Silva? A crônica de Rubem Braga responde de modo sublime: “Nós somos os joões da silva. Nós somos os populares joões da silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva.”

Com sutileza e muita poesia, o velho Braga dá uma aula de sociologia, de antropologia, e mais de quaisquer outras logias que existam no mudo da ciência. Só um poeta da crônica consegue identificar os Silva nesse emaranhado de interesses econômico-fascistas, que estão a grassar e a pisotear os Siva da vida, da vida severina, no canto poético de João Cabral de Melo Neto.

Sendo assim, além de sermos todos joões da silva, “somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida”.

Mas, embora joões da silva e Severinos, precisamos lutar contra essa força opressiva da elite econômica, que continua patrocinando o trabalho escravo, desrespeitando as instituições democráticas e o Estado de direito. Não podemos manter essa sina de excluídos. A luta contra os que defendem as injustiças não pode ser arquivada no nosso comodismo. É isso que quer nos dizer Rubem Braga e João Cabral de Melo Neto. Contra a derrubada do regime civil-militar de 1964 quem se insurgiu fortemente, indo para frente de luta, foram os intelectuais e os joões da silva e Severinos. As grandes greves do ABC paulista representaram essa luta pela democracia, sem que houvesse qualquer necessidade de escolas cívico-militares, modelos de educação inadequados para um país que tem, na sua Constituição, o dignificante título de ser democrata.

Não devemos como joões da silva ou Severinos aceitar atos fascistas praticados por uma elite, que se autodenomina de inatingível, porque o dinheiro é o seu permanente habeas corpus. Devem ser repudiados, com o devido processo legal, as agressões institucionais sofridas pelo Ministro Alexandre de Moraes e seu filho no aeroporto de Roma. Como afirma o jornalista Moisés Mendes, no Brasil247, esse subgrupo de agressores fascistas expressa o “núcleo com poder econômico, que financia e sustenta o extremismo em cidades médias e pequenas, (e que) não aparecia nos acampamentos, não invadiu Brasília e não corre o risco de chegar perto da Papuda, porque não há flagrantes e não deixa rastros como os deixados pelos manezinhos amadores”. E diz mais: “A base rica do fascismo, que financia, organiza, dissemina e trabalha pelo golpe de forma permanente, é a incitadora da base de maioria pobre das manezinhas e dos manezinhos presos em Brasília.” Essa maioria pobre, ou nem tanto pobre, representa a massa de manobra dos fascistas endinheirados que, durante toda a história do Brasil, quase sempre mal contada, se apropriaram de nossas riquezas, seguindo a regra: os meios justificam os fins. Esta é a oportunidade de conter essa sanha criminosa, sob pena de perdermos definitivamente a luta contra o ódio e a violência.

Depois de toda a barbárie praticada contra as nossas instituições democráticas, tendo como alvo, por exercer a jurisdição constitucional, um Ministro do STF, vem, numa declaração mentirosa, um dos criminosos fascistas, sem nenhum resquício de vergonha, dizer que tudo não passou de um mal-entendido. O devido processo legal, em respeito à ampla defesa, deve esclarecer se esse mal-entendido é verdadeiro ou falso. De outro modo, dura lex sed lex.

* Membro da AML e AIL
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