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24/06/2023 às 00h00min - Atualizada em 24/06/2023 às 00h00min

O racismo em O Mulato

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Assim como Os Sertões, de Euclides da Cunha, O Mulato, de Aluísio Azevedo, foram obras que as li ainda na adolescência e fui por elas impactado pela narrativa, principalmente com relação à primeira, que se desdobra na descrição da terra, do homem (“o sertanejo é, antes de tudo, um forte”) e a luta, e, quanto à segunda, por se tratar de um romance cujo enredo – o racismo - é de temática denunciadora, porquanto publicado num momento histórico, marcado pelas lutas abolicionistas, mas ainda bem atual.

O Mulato, de Aluísio Azevedo, data de 1881, tendo sido lançado em folhetins, o meio utilizado à época para publicação de romances em jornais, que, a princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sobrevivência dos autores. Em 1881, o lançamento dessa obra literária causou, na sociedade maranhense, uma grande controvérsia, por se tratar de um romance naturalista, ou realista-naturalista, com uma linguagem forte, a expressar a realidade social, dominada pelo escravismo. Veio a público quando a sociedade, resistente às mudanças, vivia a metade do século XIX.

Ao tratar da criação das personagens, esclarece o prof. Domício Proença Filho (In: Estilo de Época na Literatura, Prumo, 20. ed., 2012, p. 211) que são “frutos de observação, como tipos concretos, vivos. Aluísio Azevedo, por exemplo, para compor a personagem central do romance O mulato, inspira-se em Celso Magalhães e em Gonçalves Dias. Do primeiro, vai-se aproveitar do drama a que assistiu, da perseguição, do ambiente hostil e rancoroso que levaram o grande companheiro à morte. Do cantor dos Timbiras, vale-se do episódio do preconceito de cor, o poeta não se podendo casar com aquela que foi o grande amor de sua vida - Ana Amélia -, por ser mestiço”.

Essa obra do maranhense Aluísio Azevedo provocou escândalo, quando da sua publicação, em face da história de amor entre Dr. Raimundo, filho de uma escrava, Domingas, e Ana Rosa, a filha branca de um abastado comerciante português. E, por isso mesmo, toda a narrativa ressalta o preconceito racial, a envolver o negro, a negra, a escravidão, e, como conseqüência, o fechamento de todas as portas, mesmo para aquele que conseguiu formar-se “doutor”. Publicada, em 1881, através de folhetins, foi muito bem recebido na Corte, como exemplo de obra naturalista, quando vigia a Lei do Ventre Livre, que fora aprovada em 28 de setembro de 1871, burlada pelos proprietários de escravos, que seqüestravam os filhos recém-nascidos do seio das mães e os mandavam para instituições de caridade, para serem vendidos por enfermeiras que faziam parte dessa espécie de traficância.

O Mulato, juntamente com O Cortiço e Casa de Pensão, representa a realidade que se vivia na época em que foi lançado. Nele, reitero, Aluísio denúncia a tirania de uma patologia social, representada pelo preconceito de cor. Traça, no curso do enredo, um retrato fiel da sociedade de uma época na qual se vivia um clima tenso de inquietação política, com o avanço, em todo o mundo, das conquistas pela abolição do regime escravocrata. O preconceito era sustentado pela burguesia branca e rica e por integrantes da igreja católica.

Aluísio, nos primeiros parágrafos do capítulo inicial, faz a descrição do ambiente social onde se processará a história que irá contar. O que diz Aluísio: “Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.” E ressalta: “A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre.”

Todas essas palavras traduzem não só uma situação desabonadora, mas de sofrimento físico e mental. De todo esse sofrer, salva-se o mês de junho, que é enaltecido como o mais bonito do Maranhão: “Junho chegou, com as suas manhãs muito claras e muito brasileiras. É o mês mais bonito do Maranhão. Aparecem os primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demônios travessos e brincalhões, que vão em troça percorrer a cidade, assoviando a quem passa, atirando ao ar o chapéu dos transeuntes, virando-lhes do avesso os guarda-sóis abertos, levantando as saias das mulheres e mostrando-lhes brejeiramente as pernas.” É, nesse ambiente, que a história do português Manuel Pescada, Ana Rosa, Dr. Raimundo, filho da escrava Domingas, portanto homem de cor, D. Maria Bárbara, a sogra, uma víbora!, o cônego Diogo, um santo!, de pau oco, se desenrola, cujo desfecho, não sendo diferente dos nossos dias, vigora o preconceito racial, por prevenção contra mulatos. No final, o cônego Diogo, o servil compadre de Manuel Pescada, em manobra ardilosa, impede o casamento. Na cena final, a história mostra, assim como nos tempos atuais, a vitória do preconceito de cor: O amor de Ana Rosa deságua em outro coração: “O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca. Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...” Venceu a prevenção odiosa contra os mulatos. Aluísio continua bem atual.

* Membro da AML e AIL
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