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17/06/2023 às 00h00min - Atualizada em 17/06/2023 às 00h00min

É noite de São João: olho pro céu

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Recebo a visita de um amigo e de uma velha conhecida. Queriam conversar. Achei a ideia boa, pois estava trancado no meu silêncio, agradecido de continuar vivo neste planeta, contaminado pela estridência da morte. Esses amigos vieram com a nobre intenção de conversar, tanto que estavam desprovidos dos celulares. Nada da quebra estridente do nosso diálogo. Disseram-me, com a ênfase da renúncia desse hábito, que haviam deixado propositalmente os aparelhinhos em casa. Que bom, suspirei levemente, sem deixar transparecer meu contentamento. Encontraram-me na porta. Fato incomum. Estava olhando o tempo e perscrutando o céu. Já era início da noite. Nesses momentos, não costumo ter a companhia de incômodos interlocutores. Gosto de ver o tempo. Que passa, roçando-nos como a brisa que foge da agitação do mar. E tenho essa mania besta de olhar pro céu, pra ver se ainda brilham as estrelas. E elas estavam lá. Ainda piscam, como a nos convidar para um passeio nos caminhos traçados pela sua luminosidade. Isso, advirto, parece algum sentimento vulgar de romantismo ultrapassado, mas não é, ou, quem sabe, até pode ser. Mas é só a mania de bisbilhotar o infinito e festejar a alegria das nossas esquecidas estrelas.

Acomodaram-se o amigo e a velha conhecida. Fizemos os cumprimentos formais e informais. Como vai? Vimos te ver. Tudo bem? Como tu estás? E vai por aí a fora. Arraiais pra todo lado, enfatizava o amigo. Muita festa, dizia a velha conhecida. E tu já foste aos festejos, perguntaram-me para ouvir o que achara. Não, não fui, ainda não encontrei disposição. Tou aqui inspirando-me, olhando pro céu, como a música do Gonzaga. Ainda não vi nenhum balão multicor. Nem fogos. Nem fogueiras de São João. Ouço uns batuques pro rumo dali. Parece que pra lá a fogueira tá queimando. E os visitantes, incrédulos, enfatizaram: - Não, não tem fogueiras. É só música e dança. E as fogueiras, quis saber. Nada, garantiram-me. Tou aqui emperrado, com vontade de ver umas fogueiras e o povo tocar fogos, uns chuveiros, ou mesmo umas estrelinhas e o zoar de umas bombinhas. Ah!,que história é essa, amigo. Isso é passado. São João do Carneirinho. Plantar milho todo no dia de São José. Isso é apenas baião. Gonzaga gostava dessas coisas líricas. Lindas, não?! É, tem razão, lindas. Por isso, olho pro céu, pensando nos amores que foram ficando no caminhar de todos esses caminhos. Caminhos do Lira, amplificadora do Vadico, do Codosinho de Cima, da Belira, da Vila Macaúba. Caminhos de todas as fogueiras, armadas no cair da tarde, pau sobre pau, e acesas no limiar da noite. Um fogaréu, em cada porta. Os fogos queimando. As crianças repetindo as toadas de Luís Costa e Danavó. O boizinho de cofo. O maracá chocalhado com as pedras nas latas retorcidas. A toada cantada e repetida. Tudo em noite de São João.

Antes do forró começar, a fogueira precisar queimar. Todos dançando. Luiz com Yaiá. Ivo do seu Zé com Ivana da Sinhá. Claudete com Ivonete. José de Eurico com Maria de Dadá. A fogueira vai passando, e todo mundo passando a fogueira. É o compadre com a comadre. É o primo com prima. É o compadre com o compadre. É o namorado com a namorada. É o noivo com a noiva. O calor da fogueira acende o pavio dessas amizades, que se estendem no infinito do tempo de amar. E nunca se apaga. É o ardor da fogueira de São João. Olho pro céu. A lua passa bem devagarinha. Ora para, quieta, ora segue, sem pressa. As estrelas, insistentes, piscam sem cessar, e nos convidam pra dançar, bem juntinho, com a mão no coração. O pedaço de madeira por cima das labaredas, a estabelecer o vínculo da amizade eterna, e a voz suplicante aos céus: São Pedro, São Paulo, São Felipe, São Tiago, quero que Sinhá seja minha comadre. Passa uma, passam duas, passam três vezes. De lá pra cá, daqui pra lá. Pronto, comadre. Pronto, compadre. O aperto de mão firma o compromisso de uma amizade que nem a morte consegue matar.

Olho pro céu. E caminho pelas ruas. As fogueiras queimando, as crianças a brincar, e o chocalho rústico da lata velha marcando o ritmo da toada. O menino dançando de boi - boi da Maioba -, fantasiado num cofo de farinha, com abertura na frente, para não tropeçar na dança em volta da crepitante fogueira. Olho pro céu. E contemplo todas essas noites de São João, emperrado na porta, a trocar conversa com as visitas, que se despedem. Vão cumprir o ritual dos arraiais, instituição modernizada que quebrou o rito da solidariedade junina das portas, das fogueiras. Fico olhando pro céu, e vejo que ele está lindo, como se cada estrela fosse uma fogueira de São João, num pisca-pisca a exortar-nos a viver a eternidade de sua beleza celestial. Talvez por isso, saio desses acalentados sonhos do passado, e, tresloucado, olho pro céu, meu amor, e vejo que ele está lindo. Danço baião, danço forró, danço o xaxado, danço todas as canções de Gonzaga e danço todos os cantos de todos os Sãos Joões. Danço com Yaiá e danço com Sinhá, e ainda danço com Raqué. São noites de São João. Por isso, olho pro céu, meu amor.

* Membro da AML e AIL
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