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20/05/2023 às 00h00min - Atualizada em 20/05/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Revista aleatória – autoritarismo e arbitrariedade 

A notícia chegou-me por via oral. Ouvi alguns esparsos comentários a respeito de como os fatos tinham ocorrido. A mim gerou alguma perplexidade, pois o constrangimento imposto foi público e vexatório. Os fatos aconteceram no interior de uma aeronave comercial. Dessas que integram as nossas tradicionais linhas de transporte aéreo. Para termos uma ideia, faço a transcrição da notícia, conforme se segue:

“247 — O deputado estadual Renato Freitas (PT-PR) relatou em suas redes sociais nesta quarta-feira (10) que foi retirado de um voo para uma inspeção “aleatória” realizada por policiais federais. A abordagem ocorreu no dia 3 de maio, quando Freitas embarcou em um avião no aeroporto de Foz do Iguaçu (PR) para retornar a Curitiba após cumprir uma agenda a convite do Ministério dos Povos Indígenas. Pouco antes da decolagem, policiais entraram na aeronave e o retiraram da cabine para revistá-lo. O deputado filmou toda a situação com seu celular e, após a revista, os policiais o liberaram para embarcar novamente. Freitas classificou a abordagem como humilhante e fez questionamentos sobre a prática de revistas aleatórias pela Polícia Federal.”

Aí está a narrativa do que aconteceu. O jovem deputado do PT, manifestando a sua surpresa, compatível com a deste cronista, postou a sua indignação, em face da conduta autoritária e arbitrária da polícia: “Eu sinceramente nunca tinha ouvido falar em REVISTA ALEATÓRIA no meio do voo. Já ouvi falar em revista no embarque, em revista no saguão, mas quando todo mundo já está no avião, de forma ‘aleatória’ é novo. Coincidentemente, foi com o deputado @Renatoafjr.”

O fato em si, como relatado é brutal, atingindo, como um soco de peso-pesado, a dignidade de qualquer pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF), que se constitui no valor-fonte de todos os direitos fundamentais e o fim último da a ordem jurídica vigente. Por isso mesmo, o ser humano, como pessoa, visto individualmente, ou como integrante da sociedade, reúne em si elementos valorativos da ética, da religiosidade, da ciência, da economia (o empreendedor e consumidor, por exemplo) e da arte, que se interpenetram num relacionamento permanente a dar consistência à prevalência dos direitos fundamentais, que não podem ser desrespeitados por meras justificativas geradas pelo autoritarismo e arbitrariedade de ocasião, em que o agente público quer mostrar ao cidadão, no caso um deputado estadual do PT-PR, negro, com cabeleira black power, que é autoridade e que pode fazer revista aleatória, a ser realizada por indicação de um sistema de computação, que dirá qual o “suspeito” deve ser objeto da busca pessoal.

Surpreendido pelos fatos, expostos em algumas mídias, fui examinar primeiramente o que diz a nossa - ainda vigente - Constituição Federal a respeito dessa revista aleatória. Nada encontrei. Pelo contrário, constatei que, pelo que dispõe a Carta Magna, que, em qualquer lugar onde existe, é sempre respeitada, a exemplo do tempo de vigência e aplicação da Constituição norte-americana, que se projetou na construção do constitucionalismo do mundo, essa prática a contraria, ferindo os direitos fundamentais do cidadão ou cidadã brasileiros.

Mas, em casos dessa natureza, em que aflora o autoritarismo e a arbitrariedade do agente público, outras normas constitucionais sofrem gravíssimas agressões. Cito o inciso XV do art. 5º, que contempla a livre locomoção no território nacional em tempo de paz. Essa garantia se estende a qualquer pessoa, nacional ou estrangeira. É claro que há as exceções em caso de prática de flagrância delitiva, que a atuação da autoridade é imediata. Outro direito fundamental que foi afrontado, na análise feita dos elementos que decorrem dos fatos acima noticiados, foi o da presunção de inocência, cuja infringência se tipifica – não em razão de sentença condenatória transitada em julgada – na determinação manu militari de retirada, sob o olhar temeroso dos demais passageiros, do deputado do avião, que se identificou como parlamentar estadual e para aonde ia, no exercício de uma missão. Houve uma espécie de condenação moral antecipada, estando implícita na frase: ou cumpre a ordem ou a faremos ser cumprida. Saiu manu militari.

Não me conformei. Deixei de lado a Constituição Federal e passei para o exame do nosso Código de Processo Penal, especificamente o seu art. 244, que trata da busca pessoal. Li, reli. Não encontrei a figura processual da revista aleatória. Talvez esteja contida numa lei extravagante, já que o citado art. 244 dispõe que a busca pessoal independe de mandado. Isso a dizer que não precisa de ordem judicial. Em seguida ressalta, para não consagrar a arbitrariedade policial, as condições que limitam o seu uso. E acentua: quando houver fundada suspeita de que o revistado esteja na posse de arma proibida, ou com objeto ou papéis que constituam corpo de delito, ou seja, caracterizem-se como prova da prática de um crime. Ou ainda, a medida for determinada no curso de uma busca domiciliar, esta a servir de gênero procedimental para aquela.

Sobre essa questão – em alguns momentos tormentosos -, a jurisprudência da Corte Infraconstitucional estabelece alguns parâmetros, como se deu no julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 118.451PR, em decisão unânime da 6ª Turma, j. em 4.8.2020, da relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, o qual, no item 4 da ementa, fixa o entendimento de que “segundo o art. 244 do Código de Processo Penal, existem três hipóteses em que é permitida a busca pessoal com dispensa de autorização judicial anterior, quais sejam: os casos de prisão, quando determinada a busca domiciliar ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objeto ou papéis que constituam corpo de delito”. Como decorrência exegética, a busca em quaisquer outras situações, não previstas em lei, se constitui em constrangimento ilegal, passiva de concessão de ordem de habeas corpus. O desrespeito às regras legais de proteção à pessoa, sem adoção às cautelas a serem seguidas pelo agente público, é invasão à intimidade daquele que foi submetido ao ato arbitrário. O pior é quando se trata de evidente situação seletiva, consistente na escolha arbitrária de quem deve ser inspecionado, por motivações ideológicas ou de racismo. A dignidade da pessoa humana deve ser preservada. Sempre.

* Membro da AML e AIL
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