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07/04/2023 às 00h00min - Atualizada em 07/04/2023 às 00h00min

“Todes” - no mato sem cachorro

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
A questão “todes” – vamos tratar assim, como se tivéssemos pisando em areia movediça – me foi imposta como tema desta nossa conversa, em razão do seu insistente uso, para designar um gênero novo, uma espécie de quarto gênero, em substituição ao neutro, como se dá com os pronomes alguém, ninguém e outros designativos, que, empregados na frase, identificam-se a qual gênero está a se referir o falante, ou o escrevinhador. Nesse caminhar impositivo, deparei-me com rápidos e descomprometidos comentários a respeito do uso de “todes”. Em sua grande maioria, sem aceitação do uso dessa palavra no sentido que se pretende dar a ela. Mas o certo é que se vem insistindo com o emprego da nova palavra, e o escopo é agasalhá-la no nosso vocabulário, como ocorreu com outros termos, criados e admitidos em nossa linguagem cotidiana e mesmo na erudita. Podem ser citados, como exemplo, presidente, presidenta, parente, parenta, governante, governanta e poeta se referindo ao poeta e à poeta, caindo praticamente em desuso o feminino poetisa, o qual a mim sempre pareceu uma palavra insossa, a faltar-lhe alguma pitada semântica de sal. Mas, deixa pra lá. Os tempos são outros.

Sabe-se que a linguagem, como ocorre com a própria vida, muda com o passar do tempo. O que era não é mais. Tempos atrás se dizia à criança que não poderia falar palavra de baixo calão; depois, o baixo calão passou a ser denominado de palavrão. Qualquer palavra ofensiva, que estivesse arrolada no vocabulário proibido, de baixo calão, pronunciada em público, recebia de imediato a censura, ou o mais grave: a punição dos pais ou parentes que tivessem ascendência sobre o infrator, quer fosse referência a todos, todas ou “todes”. Essa rígida regra era aplicada em casa, na vizinhança, na rua ou na escola. A reprimenda era bem persuasiva, que levava o autor ou autora da transgressão a pensar, e pensar muito, antes de dizer: - vai te... Fiquemos por aqui, com a salvadora reticência.

Estando por esses dias em São Paulo, como sempre tem ocorrido, fui às bancas para comprar jornais e revistas. Jornais quase não se encontram. As bancas viraram comércio de quinquilharias. Fuçando daqui e dali, ainda é possível encontrarem-se alguns dos nossos matutinos. Como gosto da revista Quatro Cinco Um, cujos temas tratam, sobretudo, da arte literária, a constituir-se em leitura densa e a exigir do leitor uma desdobrada atenção, ainda consigo encontrar números dispersos. No meio da Quatro Cinco Um, uma interessante surpresa: aparece como do nada a revista, denominada sugestivamente de Humanitas, que aborda vários temas, como Para Sempre Paulo Freire, Permissividade em Expansão, Inovar é Sempre Bom?, e, na página de abertura, sob o título Átrio, a foto do grande Ulisses Guimarães, exibindo a Constituição de 1988, quando a promulgava, no histórico dia 5 de outubro daquele ano, em que ele, o presidente da Constituinte, declara o seu ódio às ditaduras, com ênfase à de 64, que recebia o golpe final da luta democrática para derrubá-la.

Nessa revista Humanitas, consta um estudo do prof. Leo Richo sobre o questionado termo “todes”. Esse estudo de lingüística é bem profundo e vale pena ser discutido por professores e professoras, ou seja, por todos, todas e “todes”, em sala de aula. Advirto que o prof. Leo Richo é mestre em comunicação e letras, sendo também autor de livros de gramática.

Entende o prof. Richo que a mudança dos valores sociais implica alterações na língua, que “vai acompanhando essas mudanças e sofre essas benéficas conseqüências”. E diz mais: “Encaro com naturalidade essas transformações. Recebo-as de braços abertos, mesmo porque, uma vez instaladas, essas mudanças passam a fazer parte do léxico e das expressões da língua.” No entanto, o mestre Leo Richo se insurge contra o emprego desse neologismo, criado para corrigir aquilo que o falante julga estar errado. Resumo, pois, sua reflexão, ao combater essa novidade, que macula a nossa língua portuguesa, quando afirma: “Todes? Pouco importa se isso deixa a língua maculada e feia, pois é o que está acontecendo. TODES dá ao E o status de desinência e vogal temática que marca um só gênero, isto é, um quarto gênero ainda a se dar nome, talvez...” E acrescenta: “O ‘E’, portanto, deixa de ser neutro para configurar um quarto e exclusivo gênero. Ou seja, se aceito e assim consagrado, por exemplo, GERENTE, PARENTE, CLIENTE, etc. só designarão esse quarto gênero e não mais indicarão masculino ou feminino, como ainda acontece na forma neutra.”

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) admite outras variações, que antes não eram aceitas, como PRESIDENTE, PRESIDENTA, PARENTE, PARENTA, INFANTE, INFANTA, portanto já incluídas na nossa língua, que é produto de uma transformação histórica do Latim, isso desde a nossa colonização, através dos padres jesuítas, que se fizeram presentes desde o equívoco do descobrimento de Cabral. Não há, pois, nenhuma justificativa lingüística para uso dessa esdrúxula palavra TODES, e mais ainda para ser incorporada em nosso falar para designar um novo gênero. Com essas reações de resistência, a situação de TODES se complica. Conclusão inevitável: está no mato sem cachorro.

* Membro da AML e AIL
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