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04/03/2023 às 00h00min - Atualizada em 04/03/2023 às 00h00min

Democracia e liberdade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
A democracia tem dessas coisas: o culto absoluto à liberdade. Como consequência, as pessoas menos informadas sobre esse regime de governo, no exercício da liberdade, pensam e agem como se pudessem fazer o que lhes dá na telha. E é aí que tudo se complica, até porque não há liberdade absoluta, o seu exercício é limitado, haja vista que não se vive isolado numa ilha, ou numa espécie de paraíso onde Adão e Eva iniciaram a vida nesta terra hoje tão avacalhada (com minhas desculpas às vacas) pela ânsia do ganho predatório. Infelizmente, meteu-se nessa história original a esperta serpente que convenceu a nossa ascendente Eva a comer do fruto da árvore proibida. Comeu do fruto, que dizem que foi a maçã, e fez com que Adão comesse. Daí pra frente tudo se degringolou: deu-se a descoberta do mundo, com todas as suas incertezas, contradições e a intimidade da nudez. Tiveram nossas personagens antepassadas que improvisar alguma rústica vestimenta, para encobrir a sua nudez. Graças a Eva e, com alguma participação acessória, a Adão, essa improvisação fez com que, mais na frente, surgisse a costureira, o alfaiate, modistas, a indústria da roupa e as grandes e pequenas lojas de vestuários. Se assim não fosse, sem comer o fruto proibido, não haveria a descoberta da nudez e continuariam Adão e Eva a viver no paraíso, sem folha de parreira e em eterna luta de resistência contra as malévolas tentações da serpente. O mundo não seria mundo.

Com o descumprimento do mandamento de não comer o fruto da árvore proibida, o mundo, de lá pra cá, chegou ao ponto que chegou. Tanto que, ao exercer a liberdade, direito fundamental do ser humano, as pessoas abusam da democracia. Exemplos históricos que estão a desafiar a nossa concepção de civilidade são encontrados no nosso dia a dia. Um deles, que estarreceu até os mais fundamentalistas democratas, foi a tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro, quando se deu a programada invasão bolsonarista à sede dos três poderes, não escapando obviamente desse ato hediondo o Supremo Tribunal Federal, cuja precípua função é interpretar a Constituição Federal.

O bom da democracia é que as sanções a serem aplicadas aos infratores estão expressas na lei, elaborada pelos representantes do povo que compõem o Poder Legislativo – o Congresso Nacional – e aplicada, na apuração administrativa pelo Poder Executivo e judicialmente, no exercício da jurisdição, pelo Poder Judiciário. Essa é a regra do jogo democrático. Em verdade o dito popular confirma esse entendimento: doa a quem doer, a lei deve ser cumprida, alcançando os poderosos que estejam no ápice da pirâmide do poder público até os mais humildes, homiziados em palafitas ou nas nossas carentes favelas.

O inglês Winston Churchill, que comandou a luta, na 2ª Guerra Mundial, contra o fascismo de Hitler, tem este conceito sobre democracia, que talvez seja definitivo. Diz ele: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.” Tem razão. Podem os adeptos de regimes ditatoriais, sustentados por baionetas e pelos fardados, ter horror à democracia, como regime de governo, mas democracia, desde a Grécia, é democracia. E deve ser dito: a democracia não se consolida apenas com o funcionamento dos poderes, mas com a garantia do exercício pleno – com as limitações constitucionais, pois não há liberdade absoluta – da liberdade.

Em outro momento, Churchill é mais preciso na concepção que tem sobre democracia, ao afirmar: “A democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela.” Nem por isso o mundo da democracia deixa de ter as suas contradições, naturais de toda sociedade. O preceito maior, de direito natural, é que os homens nascem livres e iguais. Para se alcançar a perfeição democrática, é impositivo preservar a liberdade, nos termos prescritos na Constituição Federal, e construir uma sociedade mais humana, na qual o lucro desregrado, sem compromisso com os valores sociais, objetive alcançar, ainda que numa dimensão utópica, a igualdade, com melhoria de vida para todos. Um compromisso com a civilidade e não apenas com os interesses individuais. O desafio é – e Cristo, no cerne de sua doutrina, quando passou por esta terra que fora habitada por nossos ancestrais – construir uma civilização firmada no princípio do amor, da partilha, do respeito ao outro, em que se possam extirpar as consequências deletérias do individualismo destrutivo. Isso é sonho, ou é utopia? Pode até ser. Mas antes que se chegue a uma hecatombe devastadora, impõe-se tentar transformá-lo em realidade. Amar e amar é o desafio. E não a insensatez da guerra.

* Membro da AML e AIL
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