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24/12/2022 às 00h00min - Atualizada em 24/12/2022 às 00h00min

UMA CRÔNICA DE NATAL: SAUDADE DAQUELA MESA

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
PAZ
Esta janela aberta
As cadeiras em roda por volta da mesa
A luz da lâmpada na moringa
Duas meninas que conversam longe...

Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.
Paz!
(de Manoel de Barros, do livro Face Imóvel)

Não sei por que, aproximando-se o Natal, esse poema de Manoel de Barros, Paz, me despertou uma melancólica atenção. Talvez não seja porque o poeta do Pantanal nos deixou (e como faz falta!), partindo para viver a paz desses versos, poetizados do fundo dos controvertidos sentimentos do início ao final do poema. A janela aberta, as cadeiras em ordem, as duas meninas que conversam, o telefone que descansa – que saudade desse descanso! -, e alguém sobre a cadeira chorando. Voltei ao meu pedacinho de tempo: a minha rua, com janelas abertas e cadeiras ora em volta da mesa, ora nas portas, no cair da tarde para trivialidade das conversas rotineiras. Mas sem o cárcere do telefone. O seu trinado não nos importunava. As cortinas esvoaçavam pela força cativante do vento forte, ou estavam presas, quietas, refletindo o piscar das luzes coloridas. Era a paz de uma vida, em que o presente de Natal, quando tinha, era traduzido numa lembrança efêmera e de pouco valor econômico, mas rico de amor. As ruas se perdiam na quietude da paz. Era o jogo da bola, o desejado presente, que um ou outro, cheios de felicidade, ganhavam, e muitos se aproveitavam para partilhar o óbolo natalino no jogo de rua.

Havia sempre alguém, desafortunado dessas dádivas, sobre uma cadeira rústica, ou de balanço, que chorava intimamente a sua paz. Não por não ter sido lembrado pelo Papai Noel da época, sempre elitista nas suas oferendas, e muito pouco conhecido para alguns, ou mesmo para muitos. Pouco mudou. Persiste essa grave e cruel dicotomia patológica: os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.

Independentemente dessa crônica doença social e econômica, e ética, acentue-se, o presente mais importante, que lembra a paz desse poema de Manoel de Barros, era dado com alegria ou com tristeza – os sentimentos estavam embutidos no sorriso contido ou na dor não revelada – e dizia-se no alvorecer do dia de Natal. – Feliz Natal! Estava consolidado o desejo em forma de oração. Porque o Natal tinha esse sentido supremo de oração. A frase secular é mais que um desejo. É uma vontade. É uma prece. É um pedido ao Pai para que se renasça para Vida e para Paz. A paz do poeta. Da janela aberta. Das cadeiras em ordem e em volta da mesa. De todos a conversarem não mais sobre negócios, lucros ou dividendos, ou do parcelamento das dívidas, do salário a receber, da conta a pagar, dos defeitos do amigo ou do inimigo, mas a conversarem, com sequiosa avidez pela vida, do amor e de todas as possibilidades de que é possível se renascer nesse feliz Natal.

Esse poema de Paz, de Manoel de Barros, me trouxe à lembrança a música de Sérgio Bitencourt, Naquela Mesa, que foi feita em homenagem a seu pai Jacob do Bandolim, grande ser humano e um excepcional músico, que, ao lado de Elizete Cardos, a Divina, fez uma apresentação inesquecível no Teatro João Caetano, no Rio, até hoje registrado em discos e CDs. Um dos versos de Naquela Mesa diz: naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim. O Natal é um tanto disso. Congrega sentimentos ambivalentes. Da presença e da ausência. Da presença em torno da paz da mesa. E saudade da ausência daqueles que amamos e ali não mais se encontram. Saudade daquela mesa. Dos sorrisos daquela mesa. Da sisudez daquela mesa. Dos abraços daquela mesa. A mesa que não mais se repete.

 Mas é o mesmo Manoel de Barros que nos diz num dos seus poemas: “Se a gente jogar uma pedra no vento / Ele nem olha para trás. Não é bom olhar para trás.” O vento não olha para trás. Por que a gente vai olhar para trás? É que o Natal de hoje muitas vezes nos provoca a olhar para trás. E lá está aquela mesa. As cadeiras em volta da mesa. E todos, contidos ou efusivamente, em prece e nos abraços a nos exortarem: – Feliz Natal! Embora com saudade daquela mesa, com saudade deles, que não mais lá estarão quietos ou mesmo a extravasarem todos os sentimentos de alegria, desejo a todos a Paz da janela aberta, do telefone mudo, da divida paga, da saúde liberta dos escorchantes planos de saúde, a paz do amor, enfim, a paz dessa oração sincera e também liberta do consumismo, que afronta o Deus, menino Jesus pobre, nascido numa manjedoura: feliz Natal!

* Membro da AML e AIL
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