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21/05/2022 às 00h00min - Atualizada em 21/05/2022 às 00h00min

Oh! Bendito o que semeia livros...

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 
Não sei por quê, lembrei-me desse verso de Castro Alves, para falar sobre as coisas da vida. Entre essas, o tempo e suas idiossincrasias, a nos desafiar no viver. O tempo, dizem os nossos sábios do cotidiano, costuma ter essa mania apressada de voar. E voa muitas vezes como um passarinho sem rumo. Ora vai para um lado, ora segue outros rumos. Um dia desses, fazendo uma caminhada (por recomendação médica e eterna vigilância da mulher), vi, saltitante, uma andorinha. Ia aqui e acolá. Aproximei-me para bater um papo com ela. E ela até permitiu uma certa aproximação. Depois, num ímpeto de desconversa, voou como o tempo. Quero dizer que, num átimo de um equivocado romantismo, desgastado pelo tempo, gosto de conversar com os pássaros. Ás vezes, consigo essa proeza. Basta ter o cuidado de ser cordial e amigo. Antes, mas não tão muito antes assim, tinha-se tempo de sentar à porta e conversar, olhar, pensar, aquietar-se na quietude do tempo, fechar os olhos com a sinfonia do canto do bem-te-vi. Ainda que se vivessem poucos anos, a vida era longa, parecia um nunca terminar. A eterna Dolores Duran viveu 29 anos. Cansada, chegou para recolher-se de uma noite de muita boêmia. Rabiscou um bilhete para empregada e alertou-a: - Não me acorde. Vou dormir até morrer. No seu romantismo exacerbado, ela pensava que sucumbiria à morte. Não morreu. Eternizou-se nas suas canções. Para Dolores, o seu tempo era o canto e a poesia. Por isso, ela cantou: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / E a primeira estrela que vier /Para enfeitar a noite do meu bem / Hoje eu quero paz de criança dormindo / E abandono de flores se abrindo / Para enfeitar a noite do meu bem / Quero a alegria de um barco voltando / Quero ternura de mãos se encontrando / Para enfeitar a noite do meu bem.” São versos e canto de quem nunca morrerá. Dolores Duran apenas dormiu. Estava cansada da noite.

Num desses dias, estava quietinho no cubículo da minha mansão, degustando um desses livros que nos fazem voltar no tempo. Um livro que comecei a ler por acaso. Iniciei a leitura, desde a orelha, e fui pra frente e voltei..., algumas vezes. Confesso: estou emperrando a leitura para que não acabe logo. Tentar driblar o tempo e saborear e ressaborear a narrativa histórica, sociológica e romanceada da autobiografia de Frederick Douglas, que narra a sua trajetória épica, desde o nascimento, na condição de escravo, pelos anos de 1817 ou 1818, na América do Norte, país que manteve a escravidão, a restrição e a repressão aos direitos do negro até o ano de 1968, somando um total de 349 anos de segregação racial, o que obrigou o presidente John Kennedy, em 1963, em confronto direto com as cidades do Sul dos Estados Unidos, refratárias aos direitos civis e que, para tanto, faziam uso violento da sua policia e de cães amestrados para investirem contra manifestantes que protestavam pacificamente contra o racismo, ficar ao lado dos negros discriminados e violentados. Mobilizou a Guarda Nacional do Alabama para garantir, sob ordem da corte federal, que dois estudantes negros fossem admitidos pela Universidade de Alabama. Kennedy, no seu discurso, disse: “O cerne da questão é se todos os americanos devem receber direitos iguais e oportunidades iguais, se vamos tratar nossos compatriotas do modo como gostaríamos de ser tratados.” Como Abraão Lincoln, que lutou pela aprovação da Emenda nº 13, de 1865, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos, foi assassinado pelas forças segregacionistas.

Nesse ostracismo necessário, recebo o convite do amigo Alexandre Lago para recepcionar, no início do mês de junho deste ano, o romancista, contista e poeta Mia Couto. Fiquei mais que honrado pelo convite, que considero uma convocação e, ao mesmo tempo, uma provocação para fazer uma leitura da vasta obra desse grande escritor moçambicano, cujo livro Terra Sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do Século XX. Mia Couto artista consagrado da literatura, não só pelas premiações recebidas mas pela força ficcional e poética de sua obra, embora tenha recebido críticas desabonadoras em termos literários, sob o rótulo, a mim indevido, de apelo à facilidade gratuita, firmada em mensagens piegas, o seu livro Poemas Escolhidos, que tive oportunidade de ler, tem bons e excelentes poemas. José Catello que fez o prefácio (a apresentação), encontrou razões poéticas para as seguintes afirmações analíticas, com as quais concordo: “A poesia de Mia Couto é gerida pela perplexidade. (...) O tempo é, por isso, um de seus temas centrais. Talvez, até, o tema central. Atada à passagem do tempo, a poesia de Mia Couto se apresenta, antes de tudo, como um testemunho.  (...) Mia Couto constrói, como um clandestino que viaja oculto no porão das palavras, uma maneira singular e insubstituível de observar o mundo.” Do poema Regresso retiro esta estrofe: “Voltar / a percorrer o inverso dos caminhos / reencontrar a palavra sem endereço / e contra o peito insuficiente / oferecer a lágrima que não nos defende.” No romance O Outro Pé da Sereia, extraio este trecho de profunda força poética: “A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.” Eis uma pequena amostra desse grande escritor moçambicano, que justifica o título desta croniquinha..

* Membro da AML e AIL
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