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09/04/2022 às 00h00min - Atualizada em 09/04/2022 às 00h00min

OUÇO, LOGO EXISTO!

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Levanto, dou uma boa e desprendida espreguiçada e ponho no meu rústico aparelho de som um cd: de Chico Buarque (Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / Porque parece que acontece de repente / Como desejo de eu viver sem me notar), ou ainda de Jorge Ben, atualmente Benjor, Tom Jobim, Vinícius, Teresa Cristina, Paulinho da Viola (Se um dia / Meu coração for consultado / Para saber se andou errado / Será difícil negar / Meu coração tem mania de amor), Noel Rosa (Quando o apito da fábrica de tecidos / Vem ferir os meus ouvidos / Eu me lembro de você), Waldick (Hoje que a noite está calma / E que minh’alma esperava por ti / apareceste afinal / Torturando este amor que adora / Volta fica comigo / Só mais uma noite), Ângela Maria, Dolores Duran (Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / Quero a primeira estrela que vier / Para enfeitar a noite do meu bem), Dalva de Oliveira (Se o azul do céu escurecer / E a alegria da terra fenecer / Não importa, querido, viverei do nosso amor / Se tu és do sonho dos dias meus...), Maysa (Ouça, vá viver / Sua vida com outro bem / Hoje eu já cansei / De pra você não ser ninguém), Elis Regina (É o pau, é a pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / É um caco de vidro, é a vida, é o sol / É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol...), Agnaldo Timóteo ou Rayol, Ney Matogrosso, Ivan Lins, Gonzaguinha, Caetano, Gil, Milton Nascimento, cuja poeticidade musical muito me ajudou nessa travessia pelos caminhos da vida, Bethânia, Nara Leão (as vozes do Carcará desse sofrido sertão), a nossa Alcione (Profissão Cantora, uma jóia para um deleite matinal), Gal (meu nome é Gal), Zeca Pagodinho (Deixa a Vida me Levar), João Nogueira, todas as canções de Ary Barroso, que, com Chico e Noel, formam o maior trio de criadores da música popular brasileira, sem esquecer Tom e o eterno Vinícius de Moraes, o poetinha que fez parcerias com todos os grandes poetas/compositores – Tom, Edu Lobo, Chico, Baden, Toquinho e tantos mais.

Nessa minha desorganizada relação musical, para o meu despertar do dia, ando divorciado dos novos valores. Não há Anita, nem a festejada Marília Mendonça, além de outras figuras que são consideradas influenciadoras no mundo atual e virtual. Os tempos são outros. Não há de se espantar, embora não faça da vida um espanto, que, na concepção de Luiz Felipe Pondé, em seu livro A Filosofia da Adúltera – Ensaios Selvangens, diz que “a filosofia é arte de tornar a vida um espanto. E o espanto precisa sempre se repetir para fazer efeito”. Bem. Espantar-se com esse admirável mundo novo, quiçá faça os efeitos mais humanos ou devastadores. O poeta Ferreira Gullar insistia em dizer que os seus poemas nasciam do espanto. Esse divórcio, de que falo, com o novo, talvez tenha alguma coisa a ver com o tempo. Meu tempo é outro. Embora bem novo no pensar, a idade é inexorável e chega a galope. Não é por nada que Oscar Niemeyer, o nosso grande poeta da arquitetura, ao lhe perguntaram o que é a vida, ele, de pronto, sem um mero e insignificante esgar, respondeu: - É um sopro. À época, Niemeyer já estava com mais de cem anos de idade.

Sou consciente do meu tempo. E quem não é? Vivemos num mundo das nuvens, em que a vida comunitária se dissolveu nas conversas de celulares. E os encontros são realizados sob o isolamento do estar juntos com aparelhinho entre os ágeis dedos das mãos. E a música? E o poema? E a vida? É o que Zygmunt Bauman chama de vida líquida, amor líquido, medo líquido, e outras liquidez que estão a nos contaminar no dia a dia. Creio até que deverá haver o sexo líquido. Ou mocidade líquida, e, do mesmo modo, envelhecimento líquido.

Pondé, o filósofo aqui lembrado, ainda no citado livro, ao tratar do seu envelhecimento, diz que “no mundo da tecnologia e do sexo fácil, talvez este seja um dos maiores desafios: envelhecer em paz, perder tudo, começando pelo corpo e pela alma. Filosofar é aprender a morrer, diziam os estóicos, e eles tinham razão: enquanto não perdemos o medo de perder tudo, não começamos a viver”.

E o que isso tem a ver com as minhas músicas matinais? Talvez muito e quem sabe nada. Apenas uma certeza absoluta: música é vida. A vida sem música é um deserto sem oásis. A música faz parte da poesia da vida. Ouvir todas essas canções na voz de Ângela Maria, Dalva, Bethânia, Nara Leão, Maysa, Roberto Luna, Caetano é fazer todos os caminhos certos ou errados em que os pecados, cometidos pelos poetas da música e por quem bebe o seu néctar afrodisíaco, são perdoados por Deus. A música nos concita a fazer a genuflexão do amor à poesia e nos dá a força de perdoar até mesmo quem não nos ama.
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* Membro a AML e AIL.
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