MENU

22/01/2022 às 00h00min - Atualizada em 22/01/2022 às 00h00min

“No céu e na terra há mais coisas do que sonha a vossa filosofia”

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
O título fica assim. Serei breve. Pensava em outro tema. Mas estava dando uma olhada em Hamlet – e não me perguntem, não sei por quê – e esbarrei nessa célebre frase do filho do rei morto e um dos personagens da própria peça de Shakespeare, que foi dita por ele quando dialogava com Horácio, um outro personagem e seu amigo, que lhe disse que os cavaleiros Marcelo e Bernardo, por duas noites, tiveram um encontro com uma figura semelhante ao seu falecido pai, representado pelo espírito Espectro, condenado a perambular durante a noite e a jejuar, em prisões de fogo, “até serem consumidos e purgados os feios crimes que em vida praticou”. No curso do diálogo, Hamlet, o personagem título, em conversa com Horácio, tratando do segredo dessa questão espiritual e da jura do silêncio, pronuncia essa célebre e citadíssima frase, que veio a sofrer algumas mutações, para atender às circunstâncias de cada situação, como: - De fato entre o céu e a terra, há mais coisas do sonha a nossa vã filosofia. Ou ainda: entre a riqueza e a pobreza, há mais coisas do que podemos imaginar. E mais: entre uma fé e outras, há mais interesses do que se podem conceber, sobretudo quando se professa uma cultura retrógada, estribada num protestantismo individualista, tipicamente americano, no qual a regra imposta é de um inconcebível culturalismo discriminatório: rico é rico, pobre é pobre; branco é branco, preto é preto. A lógica de cada macaco no seu galho.

Em razão desse nefasto culturalismo, nós latino-americanos e os africanos nunca deixamos conceber-nos uma raça inferior, alvo de permanente exploração social, econômica e política. Ainda se houver efetiva manifestação de resistência, vem de imediato a resposta de sempre: é o comunismo, o socialismo. Allende foi trucidado, e Pinochet foi posto num pedestal de herói dos interesses políticos e econômicos da potência dominante. Não tenho dúvida. Shakespeare, por seu personagem Hamlet, deve continuar sendo citado, pois há no céu e na terra mais coisas do que sonha o nosso culturalismo do “homem cordial”, arraigado à nossa convicção histórica de povo inferior, em convescote saltitante para os Estados Unidos e enlevar-se com a visão da estátua da liberdade, agora disseminada – essa coisa horripilante - como praga visual pelo solo de nossa pátria amada.

Duas notícias recentes me chamaram a atenção, a demonstrarem que, como gostava de dizer Stanislaw Ponte e Preta, as coisas entre o céu e terra estão mais para urubu do que para colibri. A primeira se refere a um tal de influenciador – agora tem influenciador e influenciadora pra todo lado e pra todo gosto. O sujeito – e é bom que se repita: influenciador – conduziu um grupo de influenciados para o pico de uma alta montanha, sem considerar os perigos reais do mau tempo, que anda fazendo aqui embaixo, imaginem lá nas alturas. Deixou os influenciados numa situação de extrema dificuldade e grande perigo de vida. E aí tiveram que chamar os nossos bravos soldados do fogo, que servem para enchentes e outras peripécias ainda mais complicadas. Mas, o tal do influenciador, como se nada tivesse a ver com isso, declarou do alto da sua irresponsabilidade: - “Eu sou irresponsável com a minha própria vida. Cada um que cuide da sua.” Não se tem notícia do que disseram os influenciados. É melhor não saber. Pode ser que estejam de acordo.

A outra notícia é de uma contundência própria dos nossos tempos da incultura do eu posso e faço o que bem entendo, e daí? Apenas trago o escabroso título da matéria: “Idosa bate carro e é morta estrangulada por motorista do veículo atingido em Cabo Frio, no RJ. Crime aconteceu na noite deste domingo (16) na altura do bairro Florestinha. Homem confessou o crime...” Dessa sanha assassina dos tempos atuais, em que o culto à arma passou ser política pública, não escapam nem as nossas venerandas velhinhas e as nossas inocentes criancinhas, vítimas estas da cultura do estupro de vulnerável. Deixemos Shakespeare quieta lá onde se encontra. Façamos ouvido de mercador, pois o mar não está pra peixe.

* Membro da AML e AIL
Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »