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02/09/2022 às 23h29min - Atualizada em 02/09/2022 às 23h29min

A DESIGUALDADE COMEÇOU NO PARAÍSO

Elson Araújo
 
No Velho testamento a mulher é tratada até com um certo respeito, mas raramente é protagonista. E se ousa em alguma coisa, como é o caso de Eva, é penalizada com a expulsão do Paraíso e a dor do parto. A pobre da Eva ainda figura como culpada pela desgraça que recai sobre ela e o companheiro após, mesmo desautorizados por Deus, a comerem do fruto da árvore que dá a vida e o conhecimento do bem e do mal.

Saída da costela de Adão para que ele não se sentisse só no Paraíso, a mulher é acusada de ter “caído na lábia da serpente” e levado o marido junto.
“Vocês não morrerão coisa nenhuma! Deus disse isso porque sabe que quando vocês comerem a fruta dessa árvore, os seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecendo o bem e o mal”. Foram essas as doces e sedutoras palavras da peçonhenta para fazer a cabeça da Eva. Na verdade, fica bem claro que ali já era o capeta querendo atrapalhar a formação do Reino perfeito de Deus.  

A pena principal foi a expulsão casal do paraíso, mas as acessórias atingiram mais a mulher. Ao homem, a de trabalhar pesado para se sustentar; à mulher, a do aumento da dor do parto e a de sentir desejo por, e ser dominada pelo marido. Foi, ou não, desigual a aplicação dessa pena? A desigualdade de gênero parece ter começado no paraíso.

Lá na frente, com a Terra já povoada pelo povo eleito, a mulher assume o papel romântico da maternidade no sentido de perpetuar as linhagens.  Escrava do casal Abraão e Sarai, depois chamada Sara, Agar deu à luz a Ismael, filho bastardo do patriarca da fé, que de Deus também recebeu a promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto as estrelas no céu e os grãos de areia da praia.

Sara e Agar, conforme as escrituras, mesmo a gravidez tendo sido um acordo com os amos, se desentenderam, com a última sendo obrigada a fugir, porque passou a ser maltratada pela ama.

A fuga durou pouco, pois o Anjo do Senhor pediu que ela retornasse e desse à luz recebendo a garantia de que a descendência de Ismael seria tão grande que ninguém poderá contá-la. Conforme a promessa de Deus Ismael tornou-se pai das doze tribos.

Observe que depois disso as citações sobre o filho da escrava Agar tornam-se muito raras, porque as atenções se voltam para o papel de Sara, a esposa legítima de Abraão, que já bem idosa torna-se mãe de Isaque, o pai dos gêmeos Esaú e Jacó, dos quais decorre “o crescei e multiplicai” do povo escolhido, nascendo deles grandes heróis, reis e  juízes; alguns justos, outros em algumas  ocasiões déspotas. A saga de um povo pontuada na luta pela vida, e o exercício da fé em Deus, mas também por assassinatos, adultérios, traições, fratricídios, estupros, incestos, tentativas de parricídios e genocídios. Uma caminhada onde a mulher quase sempre fica posicionada num papel secundário, ou tratada como coisa. Davi, o primeiro rei de Israel teve sete mulheres e dez concubinas, juntas e misturadas. Salomão, o filho mais famoso dele, foi além: teve 700 esposas e 300 concubinas.  Amnon, outro filho de Davi, chegou a  fazer sexo (incesto) com a própria irmã.

Mesmo diante desse “secundarismo da mulher” grafado nas escrituras bíblicas, ali no Velho Testamento têm histórias de mulheres que inspiram e encantam. Débora, por exemplo, além de profetisa chegou a ser a quarta juíza de Israel, cargo equivalente à de rainha. Ela liderou seu povo contra o domínio da “terra prometida, por volta do século XII a.C. Ester, é outra mulher de valor. Conseguiu impedir que o povo judeu fosse exterminado pelo rei Xerxes.

Ainda no Velho Testamento destacam-se, cada uma com suas nuances e qualidades: Miriã, Raabe, Judite, Rute (bisavó do rei Davi) e Ana. São mulheres, numa linguagem de hoje, que estavam além do seu tempo e que até hoje inspiram.

Incomoda-me, de alguma maneira, o histórico papel secundário da mulher ao longo da história das civilizações. O contraditório é que nem os relatos e exemplos sobre o protagonismo isolado de algumas heroínas foram suficientes para mudar esse estado de coisas que perpassou o tempo e ficou enraizado no DNA das sociedades.  

Bate-se a cabeça para se chegar a uma conclusão sobre a origem dessa posição de segundo plano da mulher. Tomemos por exemplo o Brasil. Colonizado pelos Europeus, num passado não muito distante, aqui a mulher não tinha o direito de votar nem de decidir com quem queria casar. Trabalhar? Nem Pensar!

Tudo isso seria culpa da interpretação deturpada dos textos sagrados? Arriscado dizer que sim, contudo ao longo dos livros que integram a Bíblia o que se constata é a mulher quase sempre nessa posição de submissão.

A caminhada para mudar essa situação tem sido marcada por grandes lutas. Nesse sentido, principalmente no mundo ocidental (Europa e grande parte dos territórios colonizados por ela) ocorreram avanços, mas ainda é muito pouco. Ainda há um grande caminho a ser percorrido.

Pelos meus apontamentos o texto deste sábado ainda caminharia por uns quatro parágrafos, mas encerro neste aqui. Há um termo da moda, muito utilizado pelos terapeutas modernos, que talvez indique uma mudança de rumo dessa história. A palavra é RESIGNIFICAÇÃO, a ação de atribuir um novo significado a algo ou a alguém. Talvez essa ressignificação da trajetória (história) da mulher não atinja a atual geração, mas quem sabe possa alcançar as próximas.
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