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26/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 26/08/2023 às 00h00min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

 

HOJE MEUS AMIGO COME

Seu Zé chegou naquelas terras com informação de quem tinha vindo da beira do campo. Sua mãe foi um tal de Fausta, por isso ele era “Zé de Fosta.” Mais tarde teve  uma mulher, a Enésia (Enéza, no dizer dos outros), uma mulher gorda, atarracada. Por isso ele se tornou Zé da Gorda. Quando Enésia morreu, ele virou Zé Bicudo, um apelido do qual tinha ódio, insultava pelas intimidades da mãe do seu detrator. Por isso ninguém se atrevia a chamá-lo pelo apelido.

Diziam todos a sua só voz, que Zé Bicudo virava labisonho (lobisomem). E disso todos sabiam. E tinha até os pontos do seu “fado”. O mais afamado era numa “encruza”,  (uma bifurcação) sombria e soturna, debaixo de um mangal, no lugar Carro Virô. As pessoas tinham pavor de passar por aquele caminho. Eu mesmo “me pelava de medo”. Mas o que diziam mesmo que o seu forte de viração de labisonho e ataque às pessoas, era às sextas-feiras e em dias de lua cheia. Diziam também que numa dessas o velho lobo se estrepou, se deu mal. Pois enfrentou cacete de geniparana encruzado antes, três vezes por debaixo das pernas do seu adversário, facão amolado sob a reza de São Cipriano e espingarda carregada com perna de caldeirão e vela benta.

Zé Bicudo era um sujeito asqueroso, não era amigo de ninguém assim como ninguém era seu amigo. Morava sozinho e, propositalmente, dentro do mato. Dormia sobre um jirau de varas. E, na cumieira de sua casa morava uma cobra – que era como diziam. Daí que ninguém aventurava-se a aproximar-se do seu solitário e  estranho barraco. O velho raposa estava sempre fora de casa, vivia perambulando dia e noite pelos caminhos, bodegas de cachaça  e lugares a fora. As pessoas o evitavam mas ainda assim ele, rejeitado por tudo e por todos, metia-se a “encantador de mulheres”. E, nisso, diziam coisas,

Parada pesada que ali mesmo se “assucedeu” foi com JOANA DA MANGUEIRA, ela mesma Joana do Mangá. Joana viveu “amanteada” com Mané de Suli. Mané morreu e como ali não restavam outros familiares, Joana ficou sozinha. Morava num pequeno casebre em paredes de palha e cobertura de palha, à beira daquele mangal, justo ali nas cercanias de onde o velho labisonho, diziam, costumava “cercar” as pessoas nas noites de sexta feira e em dias de lua cheia.

Joana era um tipo falastrona, roceira em diárias alugadas. Só um “quartel” de roça de vez em quando. Dava-se a quem queria e não se dava a quem não queria. Era um tipo “independente”. Contava Joana a verbo solto num eito de corte de arroz que num finalzinho de tarde, encontrava-se em sua casa, quando ali foi chegando  Zé Bicudo, assim na treita de quem queria “conversa”. Joana não gostou nem um pingo daquele assédio e já foi despachando: “Olá seu Zé, você não vai virar bicho por aí”. Mal sabia aquela doidivana de ancas largas que estaria cutucando o diabo com vara curta. E Zé Bicudo saiu dali dando coice ao vento e soltando fumaça por todos os poros.

Daí a pouco, contava Joana, o que ela viu foi uma forte ventania, mangas verdes caindo em quantidade, também caindo galhos de mangueira e um bicho fuçando, roncando e tentando entrar em sua casa com portas de palha, amarradas com embira. Apavorada e desesperada, Joana gritava: “Eu sei que é tu Zé Bicudo. Eu sei que é tu”. E o bicho roncando, fuçando e tentando entrar. Nisso, a roceira pegou o seu cutelo de serviço que ali se chama “patacho”. E brandia o ferro no esteio da casa Encheu-se de coragem e gritava  a todos os pulmões: “Entra Zé Bicudo, entra que nós se mata. Eu te corto tuas mãos teus pés, tua cabeça. E nós se desgraça. Entra que tu vai ver a desgraça. E gritava por socorro.

Em princípio, cachorros da vizinhança aproximaram-se latindo; depois os vizinhos se aproximaram. E o labisonho cascou no mato. Joana da Mangueira naquela noite não dormiu em casa. E no dia seguinte, acompanhada de vizinhos, pegou seus quase nada, arrumou a trouxa e... cascou fora para nunca mais morar naquela casa.

Zé Bicudo com todas as desvantagens que lhe recaiam sobre os ombros, tinha, porém, o que ali ninguém tinha: Tinha um boi. Manso. De cabresto. Que pastava na capoeira. Certo dia, deu de “apurar” o seu boi. Foi ao povoado mais próximo, Águas Belas, terra de malandros e malandragens e contratou um açougueiro, para a matança e venda da carne do seu gado. Enquanto o açougueiro cortava e pesava a carne, Bicudo ocupava-se em receber o dinheiro e passar o troco. Tudo certo, tudo ajustado e o açougueiro no seu ofício, no açougue, bradava aos quatro ventos: HOJE MEUS AMIGO COME! Hoje meus amigos come!

O  esquema era o seguinte: O sujeito, amigo do açougueiro pedia dois quilos, três quilos e o açougueiro pesava a mais. Sempre a mais. Bicudo, ali, marcando colado e duro na queda, passava o troco conforme a “pesada”. Era aí onde estava sendo lesado. E o açougueiro, na trapaça, bradava: HOJE MEUS AMIGO COME.

De fato, terminado o açougue, quando Bicudo foi contar a bolada de dinheiro que ele mesmo recebeu e que estava na copa revidada do seu surrado chapéu, viu  que dinheiro não tinha  ou... como ele mesmo dizia: ”não deu nada”. E não entendeu como aquele seu boião, grandão, gordo e bonito, uma vez apurado, não deu em quase em nada. Logo ele que não vendeu um quilo fiado para seu ninguém.  E longe estaria de imaginar o velho labisonho que naquela de HOJE MEUS AMIGO COME, era exatamente ali que o seu boi estava sendo comido pelos outros -  amigos do açougueiro que ele mesmo escolheu para a matança e o “apuro” do seu estimado boi.
 
Aquele boião de estImação, grandão, manso de cabresto e beira de casa, que era mais quem queria comprá-lo e que ele achou melhor “apurar”, vender em “pesadas”, aos quilos, arrobas e meia arroba, no açougue, em dia de domingo no Povoado Águas Belas. E, em meio às suas tantas interrogações, aturdido com o prejuízo, ainda podia ouvir o seu açougueiro gritando: HOJE MEUS AMIGO COME. Hoje meus amigo come. E comeram a carne do boi do velho labisonho, o terror da encruza do Carro Virô em noites de sextas-feiras e lua cheia. Ele mesmo que botou Joana do Mangá pra correr e nunca mais voltar àquele lugar.

* Viegas interpreta e questiona o social.
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