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05/08/2023 às 00h00min - Atualizada em 05/08/2023 às 00h00min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

 

QUENGA FICHADA

Naqueles idos de 1970, a CIDA, o Entroncamento da Cida, região dos Frades que veio a ser a Cidelândia, aquilo ali era uma central. Todas as manhãs, depois da aglomeração do café com leite, cuscuz e margarina, todo  mundo de bucho cheio, saiam dali seguidas carradas e mais carradas de madeira, de arroz, de babaçu, de gente. E de tudo enquanto.

Bastiãozinho estava com o seu “Cheba” puxando arroz que entregava na usina. Naquele dia, mês de agosto, saiu de casa, com o pé esquerdo e então determinou à sua mulher que fosse à usina, ajustasse as contas e recebesse todo o dinheiro a que tinha direito. Não estipulou quantia. O patrão sabia. Foi chegando na CIDA e já ficou sabendo que a sua QUENGA FICHADA estava dando com os burros n’água e dividindo a sua merenda com um “pião” que apareceu por ali.

Bastiãozinho sabe como sempre soube que  “vagabundo é bicho mau que não considera”. E então chamou a sua quenga para o quarto para as intimidades que se lhes eram costumeiras. E quando a quenga pôs-se a despir-se, Bastiãozinho tirou o cinto e pôs-se a envergá-lo. A quenga já nuazinha em pelo mas assim um tanto desconfiada, vendo aquela arrumação, disse: Eu não acredito Bastião, que tu vai me bater. – “Pois pode acreditar”, disse Bastiãozinho. E tome taca e tome taca. Bom para Bastião que na época ainda não havia a tal da Lei Maria da Penha.

Terminada a sessão do couro, Bastiãozinho tratou de capar o gato e dar o fora, pois ele sabia que a Polícia batia de cassetete e deixava o cabra prostrado. E Bastiãozinho tinha jurado que o dia em que ele apanhasse da Polícia, podia preparar que ia morrer mais gente. Então o homem se mandou. E ele, que todos os dias estava por ali, comprando e montando e carregando carradas de arroz, agora saía sabendo que tão cedo não voltaria por ali. Então enfrentava aqueles areiões e atoleiros da estrada, assim um tanto de coração apertado, sem saber a que dia, novamente, estaria de volta. E ainda assim com o pé no acelerador e o olho no retrovisor pois a Polícia poderia seguir em sua “pressiga” – ele estava de olho.

Chegou em casa e sem mais demora, perguntou a sua mulher:  Cadê o homem, pagou o dinheiro? Pagou, disse a mulher e foi pegar o dinheiro. Olhando o pequeno volume da dobra do dinheiro, Bastião já achou que a conta não estava certa. - Só isso? Perguntou. - Só isso, sua mulher respondeu. Vamos lá na usina que esse cabra vai me pagar direitinho. E lá se vão os dois. Bastiãozinho com o 38 na cintura estava de cálculo pensado, ia matar o patrão, bastava ele trastejar e não acertar as contas.

Em chegando à usina, o homem, frio, estava numa mansidão que dava gosto. Enquanto sua mulher entrou, ele ficou na janela, pelo lado de fora. E bradou ao patrão, com a mão no 38: Me paga direito e deixa de ser covarde. - Quanto é que tá faltando? Perguntou o patrão. Não, sei, tu é que sabe, respondeu Bastiãozinho querendo sangue. Aí o patrão conferiu um dinheiro e lhe entregou. Maroto, Bastião logo cochichou com os seus botões: “Ô tu adivinhô, ou o diabo de contô”. E falou:  Para mim não, entrega para a mulher que era para ela que era pra tu entregar. E disse mais: A partir de hoje eu não trabalho mais um dia pra tu, seu Fulano. Vixe Maria! Bastião nunca tinha saído com uma descompostura dessa com o patrão! Logo ele que era valente. E não era pouco!

- Que que é isso, Bastião, tais mordido do porco? Nós somos amigos, disse o ex-patrão.     - Não, eu só quero o meu dinheiro certinho e comigo você não faz como costuma fazer com os outros. Era o desafio. O patrão entendeu a mensagem, botou a viola no saco, pressentiu a desgraça  e... cada qual para o seu lado.

Em casa a mulher que nada sabia do que tinha acontecido na CIDA, disse ao marido:  Bota a cabeça no lugar e esfria essa cabeça, homem! De fato, Bastiãozinho, ainda no estradão da CIDA para Imperatriz, já vinha imaginando que se a polícia estivesse atrás dele, “o diabo ia sair da garrafa”, pois estava disposto ao que desse e o que viesse. E quando chegou na usina aí foi que a coisa pegou. Estava disposto a matar o patrão e cair no mundo. Iria pras bandas do Japão (Presidente Dutra, São Domingos, praquelas bandas. Iria juntar-se a pistoleiros, pensava. Pensou em vender por lá o seu “Cheba” e torrar a grana e... voltar à CIDA, e dar outra taca na quenga só pra ver o reboliço. Era ele, envenenado com a quenga e com o ex-patrão.

Enquanto isso o seu Cheba  arrumado e bonito, seu amigo dia e noite, debaixo de sol ou debaixo de chuva, estava ali estacionado, quieto, esperando só ligar a chave e mais uma nova carga, fosse de arroz, de algodão, de gente; fosse do que fosse. De carvão, até. Quanto ao patrão ele nunca mais teve qualquer aproximação, embora tivesse uma cisma de que um dia ainda poderia matá-lo.  A quenga arrumou as trouxas e caiu no trecho... desapareceu, foi pras bandas de Açailândia. Ela sabia o  homem com quem se deitava. Só que por aquela taca, ela não esperava. E a polícia, Bastiãozinho? – A formiga sabe a folha que corta, era como quieto, pabulava-se Bastiãozinho. E ía lá atrás do barzinho, no reservado, “tirava água do joelho” e dizia: Me dá uma bem gelada que cerveja gelada é bicho bom pra espantar mágoa de quenga fichada. Dizia isso rangendo os dentes, imaginando que a quenga escapou mas que o ex-patrão poderia virar “finado” sem mais demora, afinal estava todo o dia lá... na usina, rosnando com a peãozada.

* Viegas interpreta e questiona o social.
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