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17/06/2023 às 00h00min - Atualizada em 17/06/2023 às 00h00min

Caminhos por onde andei

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

  
"MINHA VIDA DÁ UM LIVRO"

CONFESSO, FRANCAMENTE, que tenho dificuldades em tratativas com certas situações. Pessoas que me cumprimentam, muitas das quais não conheço, não me lembro, não sei. A memória me trai. E, por conta disso tenho passado por alguns inconvenientes. Certa feita, nos arrabaldes desta Imperosa, um sujeito dá o grito, trata-me pelo meu nome e pede carona. Desavisado eu parei o carro, o sujeito pulou dentro, lado a lado comigo. No percurso, zero palavras. Lá adiante o sujeito desceu, foi embora. E eu fiquei me perguntando se aquilo não poderia ser ou ter sido uma cilada. Fiquei imaginando que “fui usado”. Não sei. Sei apenas que carreguei o tormento, a dúvida por algum tempo.

Essas incertezas me tomam em sobressalto quando eu tenho notícia de “falsos conhecidos”, nas rodoviárias da vida, nas ruas por aí ou nos lugares públicos, até - simulando “conhecimento”, e à busca de aproximação ou gestos de falsa hospitalidade ou “cavalheirismo”. E pregaram peças hediondas em suas vítimas. Por conta dessas e outras, quando viajo, procuro evitar aproximação, conversa e até mesmo cumprimentos com estranhos, o que nem sempre consigo evitar.

- Faz algum tempo, tempo quando mal acabo de desembarcar na Rodoviária em São Luís, antes mesmo de atravessar a divisória metálica de acesso ao terminal, fui recebido por um jovem sujeito em gestos largos, perguntando-me por Imperatriz, chamando-me de DOUTOR e tratando-me pelo meu nome. Olha o drama! Ele, absorto, em voz alta, espontâneo, disse o seu nome – RM – e insistia: “você não lembra de mim”? Eu, monossilábico, retrancado, tentando me sair. E meu carona, nada de chegar. E eu inquieto e inseguro. E o sujeito insistia e me cercava: “Eu sou RM, passei oito anos na penitenciária, fui condenado a 23 anos” – primeiro disse que por roubo, depois corrigiu para homicídio. E eu conjecturando o crime de LATROCÍNIO...

Disse que estava “na condicional”, e foi desfiando a sua versão: Disse que trabalhava como “rodoviário”; que era sindicalizado; que trabalhava na legalidade; que tinha carro, que tinha moto; que sua mulher o abandonou quando na prisão, mas que agora está(ria) casado novamente. E afirmou que “ainda este ano quero comprar uma Camioneta Hylux.” Olha o drama! A essa altura eu apavorado e querendo a qualquer custo me livrar daquele sujeito. Meu carona, conquanto vestido de flamenguista era ali o ponto-alvo da minha espera. E nada de chegar! E eu inquieto, olhava em todas as direções. De repente, o cara dando uma de bom sujeito me pergunta: Quer ver a minha arma? Enfiou a mão no bolso traseiro e puxou uma Bíblia. “Olha aqui a minha arma!” Dizia ele sorridente, ofegante, vitorioso e brandindo a Bíblia.  Olha aqui a minha arma! Insistia.

Foi aí que aquele meu espírito de perguntador não se conteve e então perguntei: E aí por que você puxou essa cadeia toda? Ele foi direto: Um cara matou o meu cunhado e, com um parceiro viviam me ameaçando. Acabei matando os dois. Agora entra o evangélico: “Deus faz justiça aos seus”. “E manda os seus fazerem justiça. Então eu fiz justiça”, justificou-se. Em seguida como quem fazia apologia ao crime e se oferecia:  Matar pra mim está no sangue – usava um dedo apontando para o outro braço. E desfilou seus parentes: Meu avô matou gente, meu tio foi pistoleiro famoso, meus primos também mataram gente”. Dizia isso declinando nomes... E insistia: “Está no sangue, está no sangue”. E arrematava como se estivesse se insinuando: “Se for preciso matar eu mato. Na hora!”. E eu ali, apavorado!

Desvencilhei-me dali zonzo... meio que perdido e o meu carona nada de chegar. Engatou no trânsito. Mais tarde eu livre daquele sujeito e um tempão depois, eu ficava lembrando daquele meu tempo de Rádio imperatriz naquele quadro: “MINHA VIDA DÁ UM LIVRO”. A dele e a minha. Naquelas circunstâncias.

*Viegas interpreta e questiona o social.
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