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11/11/2023 às 00h00min - Atualizada em 11/11/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Fernando Sabino: cem anos de imortalidade 

Mineiro. Nascido em 12 de outubro de 1923. Desde adolescente começou a escrever pequenas histórias e participar de concursos literários, nos quais foi premiado. No caminhar da sua vida literária, transformou-se num escritor renomado, como romancista, contista e cronista. As vozes mais respeitadas da nossa crítica literária afirmam que “Fernando Sabino tem um dom quase mágico: o de transformar os fatos mais corriqueiros do nosso dia-a-dia em histórias cheias de poesia e humor”. Escreveu muitas crônicas e contos, integrando, por isso mesmo, a elite dos cronistas brasileiros, como Rubem Braga, Oto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Carlos Heitor Cony e Carlinhos de Oliveira. É autor de dois importantes romances da literatura brasileira: O encontro marcado, publicado em 1956, e O grande mentecapto, de 1979, tendo por esta obra ganhado o Prêmio Jabuti, em 1980. Em 1999, recebeu o Prêmio Machado de Assis. Veio a falecer em 11 de outubro de 2004, no Rio de Janeiro, na véspera de completar 81 anos. Mas imortalizou-se pela consistência poética da sua obra literária, como romancista, contista e cronista.

Dizem que escrever é um dom. Fernando Sabino nasceu com esse dom, porquanto, ainda bem jovem, se inicia na arte da escrita, seguindo a máxima popular de que o poeta já nasce feito, apenas aprimora o seu talento inato pelo estudo e pela prática de construir o texto literário.

Moacyr Scliar, romancista e cronista, nascido em Porto Alegre, na introdução do seu livro Histórias que os jornais não contam – um livro de crônicas -, esclarece ao leitor que “em geral acreditamos que existe uma nítida linha divisória entre o real e o imaginário, entre o fato e a ficção: territórios claramente demarcados em nossas vidas. Frequentemente partem da realidade – um episódio histórico, um personagem conhecido, um fato acontecido – para, a partir daí, construírem suas histórias. Uma experiência que tive muitas vezes ao longo de minha trajetória literária”. E mais adiante Scliar ressalta: “Neste momento o texto jornalístico, objetivo e preciso, dá lugar à literatura ficcional. À mentira, dirá o leitor. Bem, não é propriamente mentira; são histórias que esqueceram de acontecer.” O que quer dizer Moacyr Scliar? O texto literário absorve e transfigura a realidade, dando-lhe um sentido poético, criativo, de uma outra realidade, a ficcional.

É esse o mesmo entendimento do escritor Mario Vargas Llosa, em Cartas a um jovem escritor, ao responder a duas questões: “De onde vêm as histórias que os romances contam?” e “Como ocorrem os temas aos escritores?” E Llosa responde: “Tenho uma resposta, que terá que ser bastante nuançada de modo a não resultar numa pura falácia. A raiz de todas as histórias está na experiência de quem as inventa; o que se viveu é a fonte que irriga a ficção. Isso não significa, é claro, que um romance seja sempre uma biografia dissimulada do seu autor, mas, sim, que em toda ficção, mesmo na mais livremente concebida, é possível rastrear um ponto de partida, uma semente íntima, visceralmente ligado à soma de vivência de quem forjou.” E acrescenta, no arremate definitivo da sua explicação: “Atrevo-me a defender que não há exceções a esta regra e que, em conseqüência, a invenção cientificamente pura não existe no domínio literário.”

As narrativas de Fernando Sabino nasceram da sua vocação de transcrever ficcionalmente a vida contemplada e vivida por ele. A partir dessa vivência, construiu literariamente as suas histórias, que não eram outras, a não ser as que foram por ele vivenciadas e retraduzidas numa realidade ficcional. Ou seja: através dos romances, dos contos e crônicas, elaborou esteticamente uma outra realidade, que pode estar contida nesta frase retirada do romance O encontro marcado: “É preciso ver a realidade que se esconde além, onde a vista não alcança.” Tanto em O encontro marcado e em O grande mentecapto, os seus mais conhecidos romances, bem como nas crônicas por ele escritas - e foram muitas - há uma transfiguração da realidade que o circunda para compor o mundo da literatura, alicerçado num sentimento e numa linguagem poética.

São todas belíssimas crônicas. A Última crônica, assim nominada, é um registro dessa dialetização entre o cronista e a vida vivenciada, vista e transposta para narrativa literária. Ao iniciá-la, Fernando Sabino esclarece: “A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade, estou adiando o momento de escrever.” E justifica: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.” Aí está o cronista, eternizado nesses cem anos, a estabelecer o seu processo dialético para, no olhar fora dele, encontrar a temática, que vai literariamente traduzir numa história o fato real para o mundo ficcional. E a realidade vem socorrer o cronista. No fundo do botequim, um casal de negros senta-se numa das últimas mesas, em companhia de uma negrinha de seus 3 anos, de laço na cabeça. Das observações daquela cena, sai, em crônica, um belíssimo relato, repleto de sentimentos mágicos, de profundo humanismo. O cronista, flagrado naquela introspecção, conclui: “Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.” Neste final, está por inteiro o eterno cronista Fernando Sabino.

* Membro da AML e AIL
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