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23/07/2022 às 00h00min - Atualizada em 23/07/2022 às 00h00min

Quando a vaca foi pro brejo

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Não só a vaca está indo pro brejo, mas outros, desatentos, estão indo pelo mesmo caminho e desaguando na incerteza de algumas decisões judiciais. Assim, acompanhando a leitura do site jurídico Migalhas, boletim de 17/7/2022, deparei-me com algumas inusitadas notícias sobre animais atropelados em vias públicas (estradas), bem como a respeito de bons ou maus tratos impostos a seres que nos servem para dar algumas alegrias, fazer companhia ou alimentarmo-nos, pra quem é carnívoro ou, ainda que não o seja, se sente financeiramente bem utilizando-os como mercadoria de troca.

A primeira notícia de Migalhas foi sobre o atropelamento de uma vaca. Mas, de logo aviso, não é qualquer vaca. Passo ao relato. Título: O caso do rabo da vaca. Fato: Vaca invade a rodovia, é atropelada e perde o rabo. Ao contrário do que se imagina, foi o motorista quem acabou processado. Acentua o articulista que a história é verdadeira. Acredito e estou passando adiante. Diz mais: “Mas, diga-se, desde já, não era uma vaca qualquer. Era a “Pérola das Candeias”, um animal de nobre estirpe, filha do “Lucky das 3 Colinas” e da “Preciosa do Ypê”, cuja família pertencia ao Rank Nacional de Gado Jersey. A árvore genealógica qualificava o animal como de um alto valor comercial. Aliás, nem é correto dizer ‘animal’ para alguém assim, de tão nobre sangue. Segundo seu proprietário, o preço de venda era, na época, da ordem de Cz$ 500 mil (quinhentos mil cruzados).” Resultado de tudo isso e desse valor expressivo, o motorista atropelador foi processado. A preciosa vaca, de preciosas qualidades, perdeu o rabo, ou seja, os médicos, veterinários, segundo o proprietário dessa vaca do leite de ouro, constataram uma fratura no apêndice caudal da vaca. Esclareça-se: apêndice caudal, para quem não entende de vaca, ou quadrúpede semelhante, é também conhecido como o velho e bom rabo. E sem esse imprescindível instrumento de defesa, as moscas não davam trégua à pobre e sem rabo vaca, que passou a sofrer lesões na sua parte traseira, a carecer de um tratamento específico e ainda ser mantida num estábulo fechado. Foi mais que o bastante.

O proprietário do animal, aliás que nem é bem um animal, no sentido trivial de um conceito de uma vaca com tantas qualidades e de um valor econômico a perder de vista, concluindo que sofreu um dano, em vista da desvalorização da preciosa vaca, buscou a reparação do prejuízo ajuizando uma ação de ressarcimento pelos danos, mais juros, honorários advocatícios e custas processuais. Alegou o inconformado proprietário que o motorista atropelador agiu com imprudência, imperícia e absoluta inabilidade, já que a colisão poderia ter sido evitada. E nos fundamentos que expôs ao magistrado, disse o dono da vaca: ...a quadrúpede, de cor clara, podia facilmente ser vista à distância, devido ao contraste que fazia com o escuro do asfalto e o condutor do veículo atropelador teria sido insistentemente avisado por conduções que vinham em sentido oposto, com buzina e faróis, sobre a existência de animal na pista. Ainda assim, atropelou a pobrezinha da vaca, que, conforme consta na notícia, “atravessou a cerca, foi parar na estrada, à noite, e um coitado abalroou o animal. A vítima, no caso (pelo menos na lógica do pedido), era o fazendeiro e sua vaquinha”. O fazendeiro pretendia receber 250 mil cruzados, à época dos fatos. Mas… Não teve jeito, a vaca foi pro brejo. A ação foi julgada improcedente, como seria natural em qualquer parte do mundo. Até porque, pelo rabo amputado, o dono do animal queria o ressarcimento do todo.

Numa outra demanda, para confirmar que o adágio popular que em cada cabeça uma sentença, o motociclista colidiu com um boi numa via pública e não teve êxito na sua demanda, na qual almejava o ressarcimento por danos materiais e a reparação por danos morais. A demanda foi julgada improcedente, e a sentença foi confirmada pelo Tribunal de Justiça para onde recorrera. Entendeu o tribunal que o motociclista agiu com desatenção e falta de cuidado. O que alegava o motociclista? Relato: ...que ficou demonstrado que o réu deixa os animais soltos pela região e, por conta disso, deve pagar seu prejuízo. Defendeu que a responsabilidade do dono do boi pelo ocorrido é objetiva. Assim, requereu a reforma da sentença e a condenação do réu ao pagamento de indenização pelos danos materiais e morais.” Como se deduz, o proprietário do boi da colisão o deixava solto na via pública, e quem quisesse evitar um acidente deveria adotar todos os cuidados. Nesse sentido, foi o entendimento da digníssima Juíza, na sua sentença confirmada pelo TJ: “Não houve a sucessão de eventos repentinos ou bruscos como relatado na inicial; pelo contrário, o que se observa é que o apelante estava desatento ao movimento de veículos no local e, ao ultrapassar os dois carros que estavam parados, supostamente colidiu com o animal que cruzava a via naquele momento. De acordo com o seu próprio relato, havia movimento no local, de modo que certamente outros veículos conseguiram passar pelo trecho sem maiores problemas.” Como se percebe nessa sentença, a MM. Magistrada trabalha com argumentos subjetivos, recorrendo a suposições, além de acentuar que “certamente outros veículos conseguiram passar pelo trecho sem maiores problemas”. E, dessa vez, independentemente de boi solto em via pública, quem foi pro brejo foi o pobre do motociclista.

Mas, numa outra contenda, um fazendeiro foi preso preventivamente por infligir maus-tratos a mil búfalas e setenta cavalos. O fato: Em novembro de 2021, a Polícia Ambiental do Estado de São Paulo registrou a ocorrência de maus-tratos envolvendo mil búfalas e 70 cavalos que estavam na propriedade rural. Foram encontrados, também, restos mortais de ao menos 137 animais. Feita essa cruel constatação, o fazendeiro, autor desse crime, teve a sua prisão preventiva decretada e confirmada no STF, por ter sido negada a concessão do habeas corpus.

Apenas para ilustrar e finalizar, a Constituição Federal, ao tratar do meio ambiente, no art. 226, § 1º, inciso VII, concede direitos aos animais, protegendo-os. Apenas, neste último caso, foi cumprida a norma contida na Carta Magna. Nos outros, prevaleceu o “eu” entendo assim. E o boi teve razão. Coitada da vaca.

* Membro da AML e AIL
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