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14/06/2024 às 18h29min - Atualizada em 14/06/2024 às 18h29min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

“Prefiro ser um dinossauro  de esquerda a uma  lagartixa neoliberal”

Essa frase do título expressa, de forma bem resumida, mas com profundidade de pensamento, a economista, pensadora e desenvolvimentista Maria da Conceição de Almeida Tavares, falecida aos 94 anos de idade, quando descansava do sonho e da utopia que vivera para tornar o Brasil uma sociedade com menos desigualdade. E qual a razão dessas suas palavras? Este texto é uma espécie de painel da vida de estudo e luta, desde quando, nos idos de 1954, fugindo da ditadura salazarista, Maria da Conceição Tavares chegava ao Brasil, então tendo como presidente da República Getúlio Vargas, não mais ditador, tanto que, por circunstâncias que história tentou esclarecer, suicidou-se, ao dar um tiro no coração, deixando uma histórica carta-testamento. Mas por que frase acima citada? O jornalista Laurel Teixeira, em artigo recentemente publicado, em razão da morte da economista, assim esclarece: “Essa resposta foi dada pela deputada Maria da Conceição Tavares ao deputado Roberto Campos, depois de parlamentares do campo progressista terem sido chamados de ‘dinossauros’, num debate de elevada temperatura numa Comissão Especial da Câmara dos Deputados. A comissão analisava a quebra do monopólio do petróleo. Disse isso num bate-pronto, tomada pela indignação. Mas, em seguida, num outro momento, sentiu desconforto com a resposta que deu e pediu desculpa a ele. Disse que, apesar de ser ele um homem conservador, ideologicamente de direita, era um professor, um intelectual, que deveria ser tratado com respeito, num debate democrático. Ela era assim, feita de sensibilidade à flor da pele, de honestidade, inteligência e paixão. Quando era confrontada nas suas ideias se transformava numa mãe defendendo os filhos diante do perigo. Quando ria, apertava os olhinhos. Pura ternura. Conheci de perto a professora Conceição Tavares quando fiz parte de sua equipe de assessores na Câmara dos Deputados. Era a mesma pessoa exposta em palavras nos seus artigos, nas suas entrevistas na TV, nas suas palestras, no quente dos debates. Mas não conhecia tanto as histórias pessoais e o humor que ela compartilhava nos círculos mais íntimos de amigos e amigas, capaz de arrancar gargalhadas nas pessoas mais sisudas.”

Endeusada como diva pop, a economista Conceição Tavares sempre esteve preparada intelectualmente para o debate no campo social, político e econômico, batendo firme na ignorância do seu interlocutor, como ocorreu no programa Roda Viva em que ela fez grave crítica aos exíguos conhecimentos do jornalista e economista Carlos Alberto Sardenberg, manifestando-se nos seguintes termos: “Em um dos trechos mais populares do programa, Tavares perde a paciência com Carlos Alberto Sardenberg, repórter especial da Folha à época. ‘Sardenberg, não vai discutir comigo a balança de pagamento, vai? Se olha’, diz, deixando o jornalista desconcertado. Em seguida, ela gira a cadeira e “segue o baile”, à procura da próxima pergunta.” Assim, fora sempre essa economista, que não deixava pedra sobre pedra. Gestos firmes, forte sotaque português e uma voz rouca que grita para dar ênfase às palavras. E afirmava: “Se você não se preocupa com justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata.” Ou: “Se um convidado dizia algo de que discordava, rebatia, ‘não é assim!’. Se alguém falasse uma besteira, dizia ‘é uma bobagem!’. Se errasse, corrigia no mesmo instante: ‘Está errado!’.”

Nessa linha pensamento, Maria da Conceição Tavares fazia, com contundência, críticas profundas e acerbadas ao pensamento neoliberal. Tanto que ela afirmava: “Ninguém come PIB.” E, contrariando os economistas tecnocratas, como emérita professora que fora e continua sendo, sustentava do alto do seu conhecimento que “a economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos a isso que está ocorrendo no mundo inteiro, uma brutal concentração de renda e de riqueza, o desemprego e a miséria. (…) Isso é coisa de tecnocrata alucinado, que acha que está tudo ok, e não está nada ok.” E mais: “Primeiro estabilizar, depois crescer e depois distribuir é uma falácia. Não estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui. Essa é a história da economia brasileira desde o pós-guerra.” Conclui: “De todos os direitos, (o livre pensar) é o que tem sido mais recorrentemente violado.” É também o que diz o pensador italiano Norberto Bobbio, In: Igualdade e Liberdade, 3. ed., p. 62, seguindo a linha de pensamento de Benjamin Constant, quado trata da liberdade negativa, como sendo a dos modernos, referente ao gozo privado de alguns bens fundamentais para a segurança da vida e do desenvolvimento da personalidade humana, e a liberdade positiva, que diz respeito a um bem a ser exercido perante a comunidade. Ou seja, nessa concepção há uma liberdade negativa, individualista, e uma liberdade positiva, na qual várias pessoas estão na disputa para obtenção de objetivo comum.

O pensamento da economista Conceição Tavares segue esses postulados, por ela arduamente discutidos, com a veemência dos seus conhecimentos científicos que foram plantados durante toda a sua história de vida.

O presidente Lula não poderia silenciar ante o falecimento dessa grande economista e professora de muitos economistas. E assim o fez: “Maria da Conceição de Almeida Tavares foi professora, deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores, economista e matemática, uma das maiores da nossa história. Nascida em Portugal, adotou o Brasil e nosso povo com o seu coração e paixão pelo debate público e pelas causas populares. Foi uma economista que nunca esqueceu a política e a defesa de um desenvolvimento econômico com justiça social. Formou gerações de economistas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou no BNDES, em projetos importantes para a industrialização do nosso país e com a CEPAL em defesa do desenvolvimento da América Latina. Escreveu centenas de artigos e muitos livros. Até hoje suas aulas são consultadas pelos jovens em vídeos na internet, pela sua fala sempre franca e direta. Tive o prazer e a honra de conviver e conversar muito com minha amiga ao longo dos anos, debatendo o Brasil e os nossos desafios sociais e econômicos no Instituto Cidadania, em conversas no Rio de Janeiro ou em viagens pelo Brasil. Nesse momento de despedida, meus sentimentos aos familiares, em especial aos filhos, aos muitos amigos, alunos e admiradores de Maria da Conceição Tavares.”

O Brasil deve, como o fez e vem fazendo, reverenciar essa portuguesa brasileira, que teve imensa contribuição na luta pela construção de uma sociedade economicamente mais igual e mais justa.

* Membro da AML e AIL
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