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03/05/2024 às 19h07min - Atualizada em 03/05/2024 às 19h07min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

Noel Rosa – o  cronista do  cotidiano

Noel de Medeiros Rosa, o “Poeta da Vila”, nascido em 11 de dezembro de 1910, e falecido aos 26 anos de idade, em 4 de maio de 1937, estando bem perto de completar 87 anos da sua morte. Sambista, cantor, compositor, bandolinista e violonista, foi um dos maiores e mais importantes compositores da música popular brasileira. Revolucionou o samba, fazendo sair do aconchego do morro e o levou para a ribalta da cidade, isso a partir da sua idolatrada e amada Vila Isabel, onde Noel nasceu e se projetou para o mundo artístico dos grandes meios radiofônicos, do disco de vinis e dos shows nas boates da moda. Mas entre as suas qualidades estavam duas que eram essenciais no seu viver: era inveterado boêmio e mulherengo, que incluía no seu cardápio de conquistador tanto as solteiras, quanto as casadas e as damas dos cabarés. Ceci, do Cabaré Apolo, na Lapa, para quem, com o seu parceiro Vadico, fez Dama do cabaré, Último desejo e Pra que mentir, foi um dos seus grandes amores. Seus sambas expressam esse sentido do seu viver. Seu primeiro sucesso, Com que roupa?, traz essa mensagem de resistência, na luta pela liberdade de ser boêmio: “Agora vou mudar minha conduta / Eu vou pra luta / Pois eu quero me aprumar / Vou tratar você com a força bruta / Pra poder me reabilitar / Pois esta vida não está sopa /  E eu pergunto: Com que roupa? / Com que roupa que eu vou / Pro samba que você me convidou? / Com que roupa que eu vou / Pro samba que você me convidou?” Este samba Noel o fez em razão de um episódio familiar, em que o Poeta da Vila queria sair com os amigos para uma rodada de samba, mas sua mãe, Marta de Medeiros Rosa, escondeu suas roupas para que ele não saísse. Fez o samba como protesto, composto em 1930, tendo sido a sensação do carnaval carioca de 1931. Daí para frente, as mais de 300 músicas de Noel passaram ser interpretadas pelas vozes dos cantores e cantoras das rádios. Destacam-se Linda Batista, Aracy de Almeida, Nelson Gonçalves, Almirante, Mário Reis, Francisco Alves e atualmente, vencendo o tempo, Maria Bethânia e Teresa Cristina, a demonstrar que o Poeta da Vila continua atual, porque a sua música é arte, e a arte não morre.

Três apitos, samba feito para uma das suas mulheres amadas, Noel traduz nos versos todo o sentimento de abandono daquele que ama, ao cantar: “Quando o apito da fábrica de tecidos / Vem ferir os meus ouvidos / Eu me lembro de você/Mas você anda / Sem dúvida bem zangada / E está interessada / Em fingir que não me vê / Você que atende ao apito / De uma chaminé de barro / Por que não atende ao grito tão aflito / Da buzina do meu carro.” Versos tão bem elaborados a expressarem a súplica de um amor não resolvido. Mas que permanecem eternos na lírica desse imortal artista.

Noel de Medeiros Rosa, ou apenas Noel Rosa, fez da música a vida inteira que poderia ter sido e que, por felicidade dele e todos nós, foi. Viveu um tempo curto e intenso. Como diz o poeta popular: não deixou a vida pra depois. Mas deixou um monumento musical. Mais de duzentos e cinquenta sambas de alta qualidade artística. Foram 26 anos de vida. Uma eternidade de tempo vivido. Um gênio, só explicado pela destinação de nascer e morrer pela arte de fazer música.

Nos versos Três apitos, imortalizados por tantas vozes, chama a atenção a parte final em que o poeta de Último desejo, com um acentuado lirismo, recheado de ironia, refere-se à amada, e diz: “Mas você não sabe / Que enquanto você faz pano / Faço junto do piano / Estes versos pra você. / Nos meus olhos você lê / Que eu sofro cruelmente / Com ciúmes do gerente impertinente / Que dá ordens a você.” A fábrica de tecidos, onde trabalhava a amada, permanece no mesmo lugar, em Vila Isabel. Quem passa pelos seus portões se lembra de que Noel a eternizou nos seus versos feitos junto do piano. Já o gerente impertinente não mais dá ordem para a sua amada e, segundo o compositor João de Barro (o Braguinha), era o seu pai.

Noel Rosa foi não só o Poeta da Vila, mas o Poeta do Samba. Fez do samba poesia. Ouvir seus sambas é como ler e sentir os eflúvios poéticos de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Leminski. É o que sinto. Só não tem esse sentimento sublime aquele que não sabe o que é música, a arte de fazer do samba poesia. Ou que se contenta em ouvir barulhos, como quem desinteressadamente ingere sanduíche de peixe, misturado com mortadela. O samba Feitio de oração é o exemplo mais puro e incontestável da arte de elaborar poeticamente um samba. E Noel sabia o que fazia e o que estava fazendo. Na essência, diz o sambista: “Quem acha vive se perdendo / Por isso agora eu vou me defendendo / Da dor tão cruel desta saudade / Que, por infelicidade, meu pobre peito invade / Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio / Sambar é chorar de alegria / É sorrir de nostalgia dentro da melodia / Por isso agora lá na Penha vou mandar / Minha morena pra cantar com satisfação / E com harmonia essa triste melodia / Que é meu samba em feitio de oração…” Noel canta com o seu lirismo de sempre: “Sambar é chorar de alegria / É sorrir de nostalgia dentro da melodia…”

Ao compor, musicar, escrever versos fez Noel um compromisso com o amor. Suas queixas, se as tinha, eram expostas em seus versos íntimos e de crítica social, que lhe desvendavam toda a sua alma de amante e de boêmio, compromissado apenas com o momento em que vivia. O Poeta da Vila representa um marco de profunda inovação e renovação da música brasileira. Os seus sambas fixam um limite histórico transformador do antes e do depois. Em Feitio de oração, samba feito em parceria com Vadico, seu companheiro na construção de várias peças ontológicas, Noel deixa transparecer a sua criatividade intuitiva, ao afirmar que “o samba na realidade não vem do morro / Nem lá da cidade / E quem suportar uma paixão / Sentirá que o samba então / Nasce do coração”. O samba que faz, com harmonia e melodia, tem o feitio de oração e nasce, como o amor, do coração. Essa a receita de Noel para o samba.

Na história da música brasileira, ficou célebre a polêmica que o Poeta da Vila teve com o compositor Wilson Batista. O início de tudo foi um samba de Wilson, gravado por Sílvio Caldas, em 1933, intitulado Lenço no pescoço, em que o Wilson Batista, ainda muito jovem, se referia ao malandro com o chapéu de lado, tamanco arrastando e lenço no pescoço, a revelar ter orgulho de ser vadio. Noel não gostou da apologia ao malandro e retrucou com o samba Rapaz folgado, com estes versos irônicos: “Deixa de arrastar o teu tamanco, / Pois tamanco nunca foi sandália / Tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora essa navalha / Que te atrapalha.” Wilson não responde a esse samba, mas ao genial Feitiço da Vila, no qual Noel, em parceria com Vadico, enaltece Vila Isabel: “Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos / Do arvoredo e faz a lua / Nascer mais cedo. / Lá em Vila Isabel, / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba. / São Paulo dá café, /  Minas dá leite, / E a Vila Isabel dá samba.” Wilson Batista, com o samba Conversa fiada, ironiza a Vila de Noel: “É conversa fiada dizerem / Que o samba na Vila tem feitiço / Eu fui ver para crer / E não vi nada disso. / A Vila é tranquila / Porém eu vos digo cuidado! / Antes de irem dormir / Deem duas voltas no cadeado.” Em tréplica, Noel vem com samba Palpite infeliz, pondo nos versos toda a sua ironia crítica: “Quem é você que não sabe o que diz? / Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! (...) Fazer poema lá na Vila é um brinquedo / Ao som do samba dança até o arvoredo / Eu já chamei você pra ver? / Você não viu porque não quis / Quem é você que não sabe o que diz?”. O jovem e talentoso Wilson Batista perdeu o controle e atacou Noel com o inqualificável Frankenstein da Vila, ao fazer referência ao defeito físico do Poeta da Vila. Noel não respondeu à agressão. Mas continuou, até a sua morte física, a fazer sambas como Onde está a honestidade, Com que roupa/, O orvalho vem caindo, O X do problema, Conversa de botequim, Não tem tradução, Fita amarela (seu testamento de sambista), As pastorinhas e tantos outros, que continuam atuais, sendo uma bênção e uma oração à vida ouvi-los.

 
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