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13/08/2021 às 20h38min - Atualizada em 13/08/2021 às 20h38min

O simples e o complexo

Elson Araújo
O texto de hoje pode ser considerado a continuação do anterior, “ ABSTRAÇÃO”, publicado na semana passada. Ocorre que quando a gente entra num processo consciente de abstração inevitavelmente, no retorno, os sentidos ficam levemente mais aguçados e a gente passa a observar melhor o mundo ao redor. Até as pequenas e “ invisíveis coisas” ficam mais perceptíveis. Sou prova e testemunha disto.

Faço caminhada com regularidade, e na cidade não vejo um lugar melhor para este exercício do que a Beira Rio, principalmente cedinho da manhã.  Considero o local mais do que uma grande praça pública, mas um bem-posto “observatório biopsicossocial”.  Não sei se o termo é adequado, contudo é a melhor forma que encontro no momento para descrever um local onde é possível a gente se concentrar no movimento e no comportamento das vidas que ali se entrecruzam, e sair dali com algum tipo de aprendizado.

As ariscas tracajás, que vez por outra põem a cabeça de fora da lagoa para pegar sol, os dóceis “galos-de-campina”, a briga dos pardais e bem-te-vis, o mergulho das curicacas  na lagoa em busca de comida; o rasante das pipiras, a despedida da lua, depois de iluminar a noite e a madrugada, o observador solitário do alvorecer, os policiais madrugadores,  na última ronda do plantão, a ancoragem da balsa com  trabalhadores apressados, os ébrios e drogados num sono profundo na  concha acústica, que a elegeram como teto. E tem ainda as montanhas de lixo deixadas por notívagos e não notívagos mal-educados. São muitos os estímulos sensoriais à disposição dos solitários e coletivos caminhantes.

Na minha rotina de caminhadas ali naquele espaço, já faço seis quilômetros em uma hora e seis segundos, entre uma observação e outra, consegui isolar algumas cenas que reputo capazes de nos “ensinar” alguma coisa. Vamos a elas:  

Todo dia, cedo da manhã, ela percorre cerca de dois quilômetros até chegar na nossa Beira Rio. Carrega, sempre, duas ou três sacolas com víveres. De longe, observa-se sua primeira estação ao pé de uma árvore, na beira do lago. Ali, abre a primeira sacola e cuidadosamente despeja o conteúdo numa pequena laje onde em questão de segundos ajuntam-se dezenas de pássaros, de pelo menos três espécies. Primeira parte da missão cumprida, a passos lentos, porém firmes, ela segue para a segunda estação.

No outro extremo da avenida, ao lado da Academia da Saúde, um inquieto cidadão, em situação de rua, com o prenome   de cantor de sucesso dos anos 1980, aguarda ansioso pela chegada da sua benfeitora. O Giliard  da Beira Rio não canta nada, mas sorri quando aquela mulher chega com seu café da manhã. Dia desses ele me disse que fica triste quando, por um motivo ou outro, ela não aparece. É porque, disse ele, é ruim ficar sem o cafezinho com leite e o pão, que já acostumou receber dela todos os dias.   

Aparentemente com problemas mentais o Giliard não nega a dizer o nome, mas não gosta quando as pessoas perguntam sobre sua família.  Ele fez do canto da Academia da Saúde sua morada. Passa o dia todo ali olhando para o nada. Só se movimenta quando alguém, como sua benfeitora de todas as manhãs, aparece espontaneamente com algum tipo de auxílio. É dessa forma que ela vai tocando a vida, olhando para nada, vendo o tempo passar.

Praticamente no mesmo horário um homem de meia idade surge na avenida numa bicicleta, dessas caras, de fazer trilha. Capacete, óculos escuros, carrega na mão um saco, desses de supermercado. Estaciona, desce do pequeno veículo, e se dirige até a um gato, preto e branco; que assim como os já mencionados passarinhos e o homem em situação de rua, parece que já estava aguardando pelo seu benfeitor. O animal timidamente sai do mato para receber a primeira ração do dia. Está machucado e manca de uma pata.  Incontáveis vezes já testemunhei tal cena. Dali, o ciclista se dirige até outro canto da Beira Rio para encontrar outro gato de rua, também para alimentá-lo. Só depois disso retoma sua atividade física.

No extremo oposto ao homem da bicicleta, um rapaz, que se identifica como Mauro Vanderley, passeia com dois cães, já idosos. Os animais pertenciam a “Seu Olímpio Bandeira” um amado pescador da cidade, a quem ele tinha como pai e que morreu de covid, no ano passado. Recebeu como herança o encargo de cuidar daqueles animais, tarefa à qual ele parece fazer contente e satisfeito, uma vez que a faz sempre com um sorrio que lhe toma toda a face.  

Não demora muita outra cena de todos os dias. Ainda antes das oito horas da manhã, um morador do Bairro da União aparece com um balde na mão. Com cuidado para não escorregar, ele desce até a margem do lago, enche o recipiente e logo em seguida começa a aguar as plantas. Sem assistência oficial, ele sabe que tais cuidados, neste período do ano, são necessários para que as bichinhas não morram.

Há outras, muitas outras cenas diárias, dignas de registros, ali naquele imenso observatório, mas estas, há dias, despertaram minha atenção e por isso, pela simplicidade, e ao mesmo tempo complexidade, achei importante imortalizá-las no texto de hoje pelos ensinamentos que podem sem apreendidos, e ainda pela perceptível positividade da troca energética havida entre os atores envolvidos.  Nesta troca todos ganham, até mesmo um simples observador.
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