MENU

24/09/2022 às 00h21min - Atualizada em 24/09/2022 às 00h21min

...E Abraão matou Davi

Edmilson Sanches
Davi Alves Silva, prefeito de Imperatriz - Foto: Divulgação
 
Nesta sexta-feira, 23 de setembro de 2022, completam-se 24 anos da morte do ex-prefeito e ex-deputado Davi Alves Silva. Neste dia, em 1998, produzi o seguinte texto:
*
Em 23/09/1998 ocorreu um homicídio seguido de um aparente suicídio. Poderia ser mais um registro policial se a vítima não fosse um deputado federal, ex-deputado estadual e ex-prefeito de Imperatriz.

Davi Alves Silva foi morto por Abraão Ribeiro da Silva. Além dos sobrenomes coincidentes, a relação de parentesco: Abraão era cunhado de Davi, isto é, uma das duas irmãs de Davi (que tinha outros dois irmãos) fora mulher de Abraão.

Conheci Davi Alves Silva nos primeiros anos da década de 1980, quando ele ainda não era candidato a nada, a não ser a um financiamento — que não chegou a ser formalizado — na agência do banco federal em que eu trabalhava. No cadastro dele, o apelido, de muitos conhecido: “Manoel Goiano”. A assinatura lhe saía com muito esforço.

Pouco tempo depois, Imperatriz e região seriam testemunhas (e avalistas) de um dos mais espetaculares “cases” da história política do Estado do Maranhão e, quiçá, do País.

Davi era símbolo, no imaginário popular, da pessoa que, saindo da marginalidade (social e legal, mesmo) ascendia à legitimidade política. De acusado de transgredir leis, passou a fazê-las, e, como legislador, assinou a maior de todas elas: a Constituição Federal.

Com ele ou sobre ele, não havia meio termo: as paixões que despertava eram antípodas — ou eram inteiramente favoráveis ou eram francamente contrárias.

Com a mesma facilidade, formou amigos e gerou inimigos. Mais que isso, inventou estilo: em Imperatriz, foi o primeiro a usar a 3ª pessoa do singular (“ele”) ao se referir a si mesmo. Conta-se que, para se tornar conhecido no Congresso Nacional, no seu primeiro mandato, encaminhava um aviso para o serviço de som da Câmara dos Deputados. No aviso, pedia-se ao deputado Davi Alves Silva para comparecer com urgência ao gabinete. Isso repetido por diversas vezes em vários dias teria fixado seu nome na mente de seus colegas e dos servidores federais do Parlamento.

Em termos de comunicação, seu nome era fácil de ser trabalhado: três palavras de duas sílabas e cada uma delas com os mesmos três sons de “A”, “V” e “I” (em “Alves” o “e” tem som de “i”). Ou seja, era (é) fácil pronunciar, de um jato só, sem maior esforço vocal, o nome completo do finado deputado.

Não bastasse essa facilidade natural, em termos de resultados (isto é, vitória nas eleições), ele era politicamente competente, com uma fotogenia peculiar e modo de falar que se transformava em garantia de comunicação com o seu público — praticamente todo ele formado de pessoas simples, material e culturalmente falando.

Davi não tinha eleitores; tinha seguidores. Aonde ele ia, muitos iam atrás. Elegeu-se quantas vezes quis e levou e elevou ao Poder quem quis. Parecia massa de bolo com fermento: quando mais lhe “batiam”, acusando-o do cometimento de crimes mis, mais ele crescia. Elegeu-se deputado estadual, deputado federal constituinte, prefeito, deputado federal outra vez; elegeu irmão a deputado estadual, deputado federal e prefeito. Elegeu parentes e aderentes. E nas eleições de 1998 — até os adversários mais prejudicados reconheciam — iria se eleger novamente, pela terceira vez, deputado federal, possivelmente o candidato a ser novamente mais votado pelas bandas de Imperatriz e região, no Maranhão.

Se em vida ele carregava acusações, insinuações e maldições dos inimigos que fizera (lembre-se, para ficar em um só caso, o das juras de uma ex-prefeita maranhense que lhe tinha ódio letal), sua morte não lhe diminuiu o peso e, na febre do pós-morte, 11 entre 10 conversas preferem o calor das hipóteses e especulações.

Entre essas “estórias”, conta-se que o matador, Abraão, teria cometido um ilícito, seis meses antes, com o qual Davi não concordara e, daquele dia em diante, pusera o ex-cunhado “de lado”;

que Abraão, sócio ou arrendatário de um posto de gasolina, reclamara de acertos sob responsabilidade de Davi, ainda não realizados;

que Abraão (que se fizera passar por funcionário — ou ator — da Globo, usando até um crachá daquela empresa 16 dias antes, no desfile de 7 de Setembro em Imperatriz, conforme fotos e testemunhas) seria mais uma pessoa a serviço de adversários políticos e inimigos figadais;

que Abraão isso, que Davi aquilo...

Enfim, onde não há (se é que interessa haver) informação, prospera a contrainformação, a desinformação e, pior, a deformação.

Após a sua morte, em Imperatriz e adjacências não havia canto de mesa, esquina de quarteirão onde não se falasse no nome de Davi. Do boteco mais anti-higiênico ao gabinete político mais arejado, a vida das conversas era a morte de Davi.

A diplomacia, a educação recomendaram que certas pessoas interessadas e (in)certas gentes interesseiras não soltassem fogos quando a primeira pá de terra foi posta sobre o caixão. Como se sabe, a verdade é uma busca; na terra, a vida da Humanidade se sustenta mesmo é em mentiras (ou, eufemisticamente, em não verdades). Se, em nome da verdade, fôssemos dizer tudo o que pensamos e fazer tudo o que devemos, as pessoas talvez não se tornassem melhores: simplesmente elas deixariam de existir, tal o quiproquó que daria. Na Psicanálise, chama-se de “sinceridade estúpida” àquela que diz tudo o que é (ou seria) verdade, sem relativizar/respeitar ambientes, contextos, momentos...

Em língua hebraica, Davi significa “amado”; Abraão, “deus exaltado”. O reencontro de um amado popularmente com um exaltado pessoalmente deu no que deu. Um homicídio, um suicídio. Com os dois mortos, a Terra deixou de ser o ringue em que o acerto de contas final vai se dar.

Nem na Bíblia Davi foi santo. São muitas as semelhanças entre o Davi da História Sagrada e seu homônimo de histórias sangradas.

O Davi bíblico foi amado e odiado por muitos. Tinha em volta de si 400 homens que lhe davam segurança. Ganhou popularidade matando (primeiramente, Golias). Gerou hostilidades e durante algum tempo tinha de viver fugindo de inimigos. Era bom com quem se mantinha fiel a ele. Foi vitorioso em inúmeras guerras. Formou um pequeno império em função das fraquezas de outros. Tratava barbaramente os inimigos.

Livros de estudos bíblicos dizem textualmente: “A característica predominante de Davi era a violência; era homem simples, ambicioso e violento e, desde a infância, habituou-se a uma vida de agressão e defesa”. A maior parte dos seguidores do Davi bíblico não o abandonava. Davi era dotado de “extraordinário grau de astúcia e habilidade”. “Ele foi hábil em identificar as ocasiões: se não podia promover positivamente as oportunidades, sabia evitar os passos que as poderia prejudicar”.

Se não bastassem essas coincidências, mais uma: o Davi sagrado criou um território seu: Israel. O Davi sangrado criou uma cidade, sua até no nome: Davinópolis.

Por último, o benefício da dúvida igualmente paira sobre os dois Davis. Sobre o Davi bíblico, os livros dizem, “ipsis verbis”, que “não devemos manipular a evidência para dar corpo às suspeitas”.

Davi está morto e, tal como Getúlio Vargas, saiu da vida para entrar na história, sem deixar de continuar nas estórias.

A História não escolhe as pessoas nem as seleciona por adjetivo ou folha corrida. Não se sabe se o porvir vai jogar um facho de luz sobre o muito que de obscuro se conta sobre Davi ou se os holofotes serão afastados de vez de sua vida.

A desvantagem é que personalidades políticas de vida atribulada sobrevivem à própria existência. Durante muito tempo o nome de Davi ainda continuará sendo osso de ofício para muita gente: na Justiça, para a divisão da herança material; na política, para a partição ou conquista do espólio eleitoral; na imprensa, com publicação de fatos antecedentes, correlatos e consequentes. E, entre outras coisas, na boca do povo, que já gosta de tratar da vida e morte alheia...

Personagem acostumado às notícias sobre ele nada positivas da grande e da local Imprensa, Davi Alves Silva deixou, com sua morte, um espaço pessoal e político impossível de ser preenchido, pois, se alguns acreditam que votos podem ser transferidos, carisma, não.

Como está no “Mágico de Oz”, um bruxo que morre leva consigo seus feitiços.

EDMILSON SANCHES
[email protected]

Link
Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »